segunda-feira, junho 16, 2003

O PERFIL DA EUROPA



Por Manuel Alves


1º PROJECTO DE TEXTO DE PREÂMBULO (28 de Maio de 2003)

A nossa Constituição chama-se "democracia" porque o poder está nas mãos, não de uma minoria, mas de todo o povo. Tucídides II, 37.

Conscientes de que a Europa é um continente portador de civilização; de que os seus habitantes, vindos em vagas sucessivas desde os primórdios da humanidade, aqui desenvolveram progressivamente os valores em que se funda o humanismo: igualdade dos seres, liberdade, respeito pela razão,
Inspirando-se nas heranças culturais, religiosas e humanistas da Europa, que, alimentadas primeiro pelas civilizações helénica e romana, marcadas pelo elã espiritual que a percorreu e que continua a estar presente no seu património, e depois pelas correntes filosóficas do Século das Luzes, enraizaram na vida da sociedade a sua percepção do papel central da pessoa humana e dos seus direitos invioláveis e inalienáveis, bem como do respeito pelo direito,
Convencidos de que a Europa doravante reunida tenciona prosseguir esta trajectória de civilização, de progresso e de prosperidade a bem de todos os seus habitantes, incluindo os mais frágeis e os mais desprotegidos, quer continuar a ser um continente aberto à cultura, ao saber e ao progresso social, e deseja aprofundar o carácter democrático e transparente da sua vida pública e actuar em prol da paz, da justiça e da solidariedade no mundo,
Persuadidos de que os povos da Europa, continuando embora orgulhosos da sua identidade e da sua história nacional, estão decididos a ultrapassar as antigas discórdias e unidos por laços cada vez mais estreitos, a forjar o seu destino comum,
Certos de que, "Unida na diversidade", a Europa lhes oferece as melhores possibilidades de, respeitando os direitos de cada um e estando cientes das suas responsabilidades para com as gerações futuras e para com a Terra, prosseguir a grande aventura que faz dela um espaço privilegiado de esperança humana,
Gratos aos membros da Convenção Europeia por terem elaborado a presente Constituição em nome dos cidadãos e dos Estados da Europa,



2º PROJECTO DE TEXTO DE PREÂMBULO (12 de Junho de 2003)

A nossa Constituição chama-se "democracia" porque o poder está nas mãos, não de uma minoria, mas do maior número de cidadãos. Tucídides II, 37

Conscientes ... (idem)
Inspirando-se nas heranças culturais, religiosas e humanistas da Europa, que, ainda e sempre presentes no seu património, enraizaram na vida da sociedade a sua percepção do papel central da pessoa humana e dos seus direitos invioláveis e inalienáveis, bem como do respeito pelo direito,
Convencidos ... (idem)
Persuadidos ... (idem)
Certos de que ... (idem)
Gratos ... (idem)

[Os quais, depois de terem trocado os seus plenos poderes reconhecidos em boa e devida forma, acordaram nas disposições seguintes:]

(Traduções apresentadas pela Convenção Europeia)

***


NO PASSADO DIA 28 DE MAIO, o Praesidium da Convenção Europeia apresentou aos seus membros o 1º projecto de texto de Preâmbulo do Tratado que instituirá a Constituição da União Europeia.

Os preâmbulos das leis são sempre importantes porque proporcionam um rigoroso sentido a todo o articulado jurídico, reduzindo as dúvidas e servindo de guia aos interpretes. Os preâmbulos das Constituições são ainda mais importantes; tratando-se de articulados de normas jurídico-políticas, obrigam os interpretes a utilizar critérios fieis à vontade do constituinte.

O conteúdo da 1ª proposta de Preâmbulo era tudo menos ambí­guo, revelando-nos que os convencionais estavam bem conscientes e certos do que queriam. O teor da 2ª proposta, apresentada em 12 de Junho, reforça-nos essa ideia.

No início, lia-se na epí­grafe inspiradora: «A nossa Constituição chama-se "democracia" porque o poder está nas mãos, não de uma minoria, mas de todo o povo.»

Tratando-se de uma definição de «democracia», expressa por intermédio de uma oposição de relativos (Aristóteles, Organon, I, 10 ) - "o poder está nas mãos, não de uma minoria, mas de todo o povo" -, é o próprio paralogismo dessa primeira versão a revelar-nos, sem sofisma, a intenção presidentista dos convencionais.

Sendo certo que o "povo" para Tucí­dides não incluía a maioria dos habitantes da Cidade - excluíndo os metecos, os escravos e as mulheres - ao substituir-se "todo o povo" por "um maior número de cidadãos" ficam a História e a Lógica respeitadas, e nos leitores a impressão de que os convencionais evitaram a tempo a mofa do público: o contrário ou oposto de uma minoria, tanto na Grécia antiga como na actual, nunca podia ser uma totalidade. Nada indica, no entanto, que os presidentistas venham a abandonar a defesa da ideia segundo a qual o "presidente da Europa será o presidente de todos os europeus".

Desde Maastricht, a descristianização da Europa e a destruição das Pátrias têm sido dois pontos essenciais do programa "civilizacional" da União Europeia. Todavia, entre a 1ª e a 2ª versão do Preâmbulo, dir-se-ia que os convencionais abandonaram o "elã espiritual" que vem das civilizações helénica e romana, e que foi continuado "depois pelas correntes filosóficas do Século das Luzes". Quando ainda ecoavam na imprensa as incisivas e duras palavras de Monsenhor Josef Homeyer - "Ricordare la responsabilitá davanti a Dio, l'umanitá e la creazione, significherebbe mostrare in maniera inequivocabile che il potere pubblico non é assoluto." (L'Osservatore Romano, 7 Giugno 2003) - que outra opção lhes restava, a não ser apagar, esconder, insular um tal "elã espiritual"?

Não, não creio que riscar um tal "elã" signifique fraqueza ou desejo de compromisso. Olhando ao conteúdo do vastíssimo articulado jurídico-polí­tico proposto, ter-se-á tratado antes de uma retirada para as sombras, na senda exemplar de Jean Monnet: "Não tenho nenhum gosto pela sombra, mas se fôr pagando o preço da obscuridade que se pode fazer melhor as coisas, então escolho as sombras".

O que singulariza o conceito de Europa do Praesidium da Convenção, ficou bem afirmado na 1ª proposta e não foi desmentido na 2ª. A ausência de uma referência ao período medieval - ao período da res publica christiana - é por demais evidente e esclarecedora.

Existiu um Iluminismo alemão, italiano, espanhol, mesmo português, mas todos tardios e subsidiários do francês e da sua vocação redentora: retirar os povos das trevas religiosas e políticas medievais, levando-as para a terra prometida da razão e da filantropia. Os governantes, é claro, tinham por missão levar a felicidade aos povos libertos da ascética cristã, que inculcava a austeridade de costumes e a submissão aos valores somáticos e espirituais.

No centro do Iluminismo sempre esteve uma intenção polémica contra o cristianismo. As luzes da razão vinham substituir a fé. Doravante, a sociedade, o Estado, a arte, a moral, a própria religião, deviam ser racionais e não mais que racionais. Tudo se podia compreender e houve iluministas, e seus descendentes, que acreditaram tudo poder compreender, como Hegel no seu idealismo absoluto, Marx no seu materialismo dialectico, Lenine na sua teoria da revolução, Mussolini na sua doutrina do Estado.

Quero crer que os convencionais não se revêm em alguma descendência do Iluminismo. Mas talvez, por hipótese, se revejam naqueles que hoje atribuem à Europa um perfil cultural que terá sido desenhado desde Cí­cero a Erasmo, de Lutero a Winckelman e a Göethe, de Hölderlin a Nietzsche e a Heidegger. Nessa visão da cultura europeia, o Cristianismo que se expressou em autores como S. Agostinho (354- 430), S. Isidoro de Sevilha (?560-636), S. Anselmo (1033-1109), S. Boaventura (1221-1274), S. Tomás de Aquino (1225/27-1274), Francisco Suárez (1548-1617) , é no fundo entendido como uma violência contra as consciências porque, em nome de uma revelação, se arrogaria o privilégio e o direito de dizer o verdadeiro e o universal.

Qualquer que seja o galho da árvore frondosa do Iluminismo a partir do qual olhem para a Europa, para a maioria dos convencionais Deus continua a ser a palavra interdita.

A herança europeia inclui, para além da filosofia grega, do direito romano e do próprio Iluminismo, as estruturas sociais e as tradições germânicas, a revelação cristã e a sua doutrina humanista. Incluir no preâmbulo da Constituição europeia uma referência ao humanismo cristão e à responsabilidade do homem perante Deus, seria aceitar o que há de infindável e de incomensurável na alma dos povos e nações desta península do continente asiático a que chamamos Europa; seria admitir que o humanismo cristão é parte essencial da herança e actualidade da Europa; seria reconhecer, afinal, que existe uma personalidade europeia e ocidental aspirando à unidade na diversidade. Ora é isso que os convencionais não admitem. Os convencionais não querem admitir que a Constituição da União Europeia possa visar a concretização de uma Europa das Pátrias ao serviço de um projecto de paz e de universalidade.

Os convencionais, filhos do Iluminismo, nominalistas em filosofia, não podem naturalmente reconhecer nem entender o que seja uma tradição nacional, viva e complexa. Para eles nada há de essencial nas sociedades, como nada há de essencial nos homens. Se ainda admitem as nações, admitem-nas apenas como peças de museu, rejeitando que na Europa do futuro possa haver europeus que queiram continuar a colocar a sua terra antes da sua proví­ncia, a sua proví­ncia antes da sua pátria, a sua pátria antes da Europa, e, acima de todas as pátrias terrenas, a Cidade de Deus.

Segundo o Praesidium da Convenção Europeia, as Nações da Europa nada mais são do que Estados, e os Estados nada mais são do que colégios de cidadãos eleitores agregados ou a agregar. No Direito Europeu que querem definir, só a lei positiva terá lugar. Cegos para o que de substancial existe nos homens e nos povos, a sua vontade é inequívoca: pretendem criar na Europa um poder público absoluto; um poder público absolutamente alicerçado no produto do acordo momentâneo de vontades individuais.