segunda-feira, novembro 24, 2003

O MAPA DA EUROPA

Por Manuel Alves

A maré do referendo acerca do projecto de Constituição europeia continua a subir ameaçando oxigenar as águas turvas do ripanço europeu.

Por ocasião da ratificação do tratado de Maastricht a maré tocou a França e a Dinamarca, e, por ocasião do tratado de Nice, a Irlanda. Desta vez, em princípio, haverá consultas populares na Dinamarca, Países Baixos, Irlanda, Luxemburgo, Espanha, e talvez outras mais. Não é de admirar por isso que a subida da maré do referendo, a que se assiste por essa Europa fora, esteja a fazer surgir bastos sinais de preocupação e de incerteza entre os partidários da Constituição europeia.

Alguns comportam-se como se a União tivesse já colapsado, escavando-lhe as ruínas e desenhando-lhe novos projectos. Na França em declínio, por exemplo, aventa-se uma vez mais a possibilidade de se formalizar “uma Europa a duas velocidades”. Edouard Balladur, naturalmente, aproveitou para se congratular (“Une ou deux Europe”, Le Figaro, 29 de Outubro de 2003), enquanto o mais afoito «Director da Fundação para a pesquisa estratégica», François Heisbourg, sugeriu que de um lado podia ficar a “União constitucional” e, do outro, a “Europa do tratado de Nice” (“Le référendum et l’Europe-puissance”, Le Monde, 10 de Novembro de 2003)... O primeiro-ministro francês, Jean-Pierre Raffarin, já expôs o seu ponto fraco: "Se a Europa dos 25 fracassar, que hipótese sobra à França? A iniciativa de aproximação franco-alemã" (Daniel do Rosário, "A ofensiva do eixo", Expresso, 22 de Novembro de 2003).

Até ao fim da Conferência Intergovernamental e à realização dos referendos, é pois de prever uma multiplicação de chantagens e de ameaças.

Os partidários da Constituição gostariam que nos concentrássemos na actual querela entre "pequenos" e "grandes" Estados europeus. Essa querela deve merecer-nos atenção - sem dúvida - mas será muito mais útil que comecemos por recordar quando e porque é que a dimensão populacional dos Estados passou a ter importância na construção da “unidade europeia”.

Não se diga que a querela entre "pequenos" e "grandes" foi provocada pelo alargamento, porque esse problema não surgiu quando o “grande” Reino Unido se juntou à comunidade europeia, a par das “pequenas” Dinamarca e Irlanda. Por essa altura, os estadistas do «Velho Continente» ainda afirmavam querer juntar os povos e as nações europeias através dos respectivos Estados; a comunidade ainda se construía na base da igual importância e dignidade dos Estados; e ainda se reconhecia inteira legitimidade aos Chefes de Estado ou de Governo para representar as respectivas democracias nacionais.

O problema da dimensão populacional dos Estados só surgiu quando se instituiu o Parlamento europeu. Ao aceitarem a instituição de um órgão que agregava a representação dos cidadãos por cima dos seus Estados, os Chefes de Estado e de Governo acolheram o princípio da desigualdade dos Estados e diminuíram o princípio de legitimidade das democracias nacionais que representavam.

Foi por intermédio da criação do Parlamento europeu que se lançou uma contradição entre duas legitimidades que, não obstante derivarem da mesma fonte – o voto dos cidadãos -, cedo ou tarde, terá de ser superada: a contradição entre uma União Europeia baseada nas democracias nacionais e uma União Europeia baseada numa unidade supranacional onde o peso dos “grandes” esmagará tudo à sua passagem.

Essa contradição eclodiu de forma dramática em Nice, onde foi possível assistir ao agonizante protesto dos representantes dos “pequenos” Estados em busca de “minorias de bloqueio” nos órgãos colegiais da União. Então, os “grandes” limitaram-se a sorrir perante os “pequenos” diminuídos face à “grandeza europeia”.

Do sorriso, passou-se entretanto à ameaça.

Na «Declaração de Roma», em 18 de Julho de 2003, Valéry Giscard d’Estaing já não teve pejo em afirmar que pôr em causa o seu projecto de Constituição, "ainda que só parcialmente, conduzi-lo-ia ao fracasso". Mas, porque é que manter intacto o projecto de Constituição dos convencionais é assim tão importante?

Porque nele se resolve a enunciada contradição, como os próprios convencionais deixaram tombar ao afirmar que não podiam aceitar uma Europa onde “o dogma da igualdade entre os Estados” levaria a uma situação de "desigualdade entre os cidadãos" - "il ne serait pas acceptable d'imaginer une Europe où le dogme de l'égalité entre les Etats aboutirait à une situation d'inégalité entre les citoyens." (Giuliano Amato, Jean-Luc Dehaene e Valéry Giscard d’Estaing, “L'Europe demain : la fausse querelle des «petits» et des «grands»”, Le Monde, 13 de Novembro de 2003). Esta linguagem algo cifrada dos convencionais quer simplesmente dizer que, no seu projecto, a agregação dos cidadãos nas democracias nacionais fica subalternizada à agregação dos cidadãos ao nível europeu, ou seja, os Estados-membros ficam remetidos para a condição de instâncias inferiores e secundárias de um Estado unitário europeu em construção.

E a referida contradição está na verdade praticamente superada no projecto de Constituição, quando se atribui explicitamente à União Europeia a personalidade jurídica de um Estado cuja soberania constituinte se sobrepõe à dos Estados-membros (Jorge Miranda, “«Constituição» Europeia e Revisão Constitucional”, Público, 1 de Outubro de 2003), mas também quando surgem nele tão largamente reforçados de competências os órgãos supranacionais existentes: o Parlamento europeu e a Comissão.

A questão essencial em qualquer Constituição é sempre a de saber quem é que faz e aprova as leis. Ora segundo a Constituição dos convencionais, a função legislativa será exercida pelo Conselho de Ministros (órgão das “soberanias nacionais”, deliberando por maioria qualificada, sem veto), pelo Parlamento (órgão da “soberania europeia”, deliberando por maioria simples) e pela Comissão (Executivo “europeu”, deliberando por maioria simples com uma legitimidade conferida pelo Parlamento). Porque é ao Conselho de Ministros e ao Parlamento que compete aceitarem, ou não, as iniciativas legislativas da Comissão, se fosse ratificada a Constituição dos convencionais, às democracias nacionais pouco mais restaria que uma representação num Conselho de Ministros onde as mais importantes decisões seriam tomadas por maioria qualificada, sem veto.

Acresce que a Constituição prevê também a anulação das soberanias nacionais em matéria tão decisiva como a política externa e de defesa, instituindo um Ministro europeu dos Negócios Estrangeiros – Vice-presidente da Comissão - que agiria, falaria, e poderia assinar Tratados internacionais em nome dos Estados-membros.

Pela disposição dos órgãos e das competências, é certo que muito dificilmente se poderiam evitar no futuro os conflitos entre um Conselho de Ministros, que formalmente ainda “representa os Estados-membros”, e uma Comissão que se diz “representar o interesse geral” da União. Mas, sempre que estalassem conflitos de competências entre os vários órgãos legislativos, para qual deles seria pedido reforço de competências? Seria de esperar a atribuição futura de mais poderes ao Conselho de Ministros, órgão das residuais “soberanias nacionais”? Cedo ou tarde, os reforços de competências seriam naturalmente pedidos e atribuídos pelos “grandes” aos órgãos supranacionais, ou seja, à Comissão e ao Parlamento. Foi à Comissão e ao Parlamento que os convencionais atribuíram a missão de acabar de vez com o poder dos “pequenos”.

E tanto assim é que na Comissão, Michel Barnier e António Vitorino pedem já um “programa interinstitucional”, tendo por centro uma agenda proposta pela Comissão, e um Ministro da política económica europeia, sob a coordenação do seu presidente. E a procissão ainda vai no adro. Para 2005 está prometido um debate acerca da afectação directa de receitas fiscais para o Estado europeu. Seguir-se-ia, naturalmente, a pretexto da gestão dos programas e da aplicação da legislação europeia, a criação de uma Administração europeia a instalar e a intervir directamente sobre as administrações dos Estados-membros, convertidas em administrações subordinadas ao Estado europeu. E seguir-se-ia também a definição das fronteiras do Estado europeu, da sua capital, e das línguas oficiais (num máximo de três, por óbvias razões “técnicas”...). Não, não se pense que tudo isto são devaneios de alguns eurocratas; são propostas concretas dos partidários do Estado Europeu (como exemplo, ver Alain Lamassoure, “Après la Convention: vers la Constitution Européenne”, Commentaire, Outono de 2003).

Quanto ao Parlamento, é certo que ainda ali estão alguns deputados como Georges Berthu e José Ribeiro e Castro com coragem suficiente para lavrar o seu protesto face ao Estado unitário proposto pelos convencionais... Cedo ou tarde, porém, passariam a existir apenas deputados submetidos às lógicas e às disciplinas partidárias das «esquerdas» e das «direitas» europeias, anulando qualquer vestígio de representação dos interesses das Nações por que foram eleitos.

Depois de Nice, na perspectiva da construção de um Estado europeu, a alternativa que se desenhava no horizonte era entre presidencialismo e parlamentarismo. A solução presidencialista era precocemente “perigosa”. Bastou, por isso, impedir-se a instituição de uma segunda Câmara das Nações, para que ficasse escancarada a porta ao que por aí se designa por “democracia supranacional”, que o mesmo é dizer ao estabelecimento de um Estado europeu unitário assente na atribuição do monopólio do poder aos directórios partidários, que, no Parlamento europeu, se designam por Partido Popular Europeu (PPE) e Partido Socialista Europeu (PSE). Os "grandes" da Constituição dos convencionais, afinal, não são propriamente os Estados...

Pelo paralelismo com algumas democracias nacionais, percebe-se bem o alcance da démarche dos convencionais. Porque é que em certas nações - como em Portugal - para alguns é tão importante que exista uma e apenas uma Assembleia legislativa? Não embaraça a resposta: porque em tais nações, é por intermédio da unidade da representação, personificada na unidade de uma Assembleia, que se pode dispor de um poder imediato, presente, instantâneo, que subindo do legislativo ao executivo fica sempre guardado nas mãos de uns poucos - os directórios partidários. Aí está a opção de fundo tomada pelos convencionais ao estabelecerem o actual projecto de Estado europeu.

Contra a lição actualíssima da História, quando ainda está bem viva na memória de todos a irremissível liquidação do colossal projecto de fusão de Nações, levantado pelas oligarquias comunistas do Leste, eis que as oligarquias democratistas do Ocidente copiam a seu modo o empreendimento falhado. Esquecem, lamentavelmente, – como advertiu um dia Mário Saraiva - que as Nações com uma alma, uma língua, uma independência de vida e fazedoras de História, nunca são impunemente suprimidas do mapa dos continentes.

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