terça-feira, maio 25, 2004

A HORA DO OCIDENTE

Por Mendo Castro Henriques

De ambos os lados do Atlântico, perante o calendário da retracção americana do Iraque, ouve-se afirmar que, se os Estados Unidos fracassam, é o conjunto do mundo ocidental que fracassará. Acrescenta-se que o fim da esperança de um Iraque democrático, será o toque de finados dos regimes muçulmanos moderados; e que a derrota da maior potência militar será a oportunidade dos fundamentalistas.

São tudo argumentos errados e, sobretudo, nocivos. Assentam na ideia do Ocidente como um eixo geopolítico mantido pela confrontação com um inimigo comum, que há quinze anos era efectivamente a URSS e que agora seria o Islão.

Há uns dez anos atrás, na Foreign Affairs, Owen Harries antecipava o declínio do eixo ocidental, devido ao desaparecimento do inimigo comum. E desde então, mentes insidiosas têm avisado que está à vista o fim da aliança ocidental, excitando a comunicação social de massas e perdendo de vista o bom senso das populações.

Charles A. Kupchan, ex-director de Assuntos Europeus no NSC de Clinton, em O fim da era americana, 2002, chega a falar da possibilidade de uma "guerra civil" entre os EUA e a UE. O Ocidente estaria fadado a dividir-se em duas metades, como o Império Romano após o século III. Robert Kagan escrevinhou que os Europeus descendem de Vénus e os americanos de Marte. Há ressentimento contra os EUA, apresentados como cow-boys grosseiros; Michael Moore acaba de ganhar a Palma de Ouro de Cannes. E boa parte dos media esquece que a tal Europa efeminada acaba de se alargar com sucesso na planície central, na cintura báltica, e a todas as ilhas do Mediterrâneo.

Todo este debate sofre da doença infantil dos debates: falta de cultura e de memória. O Ocidente provou que existe após os ataques do 11 de Setembro, quando os parceiros europeus da NATO invocaram o art.º 5 para com os EUA. O Ocidente prova que existe ao realizar o grande debate sobre se a Guerra do Iraque é justa, ao condenar sevícias e crimes de guerra, e ao defender a criação de regimes livres e democráticos, onde puderem ser criados de dentro para fora, e não à força. Por tudo isto, o Ocidente não vive à custa dos inimigos. Existe por si próprio.

Os princípios desta ordem ocidental vêm do fim da Antiguidade, sendo indicados na legislação de Justiniano como a força, a razão e a revelação. Desde então, o soberano ocidental deve ser um “imperator”, capaz de defender o Estado com a força das armas; um “religiosissimus juris”, pois a ordem jurídica tem fundamento racional e um “defensor fidei”, que sustenta a verdade revelada. Durante a Idade Média, os princípios de “imperium”, “studium” e “sacerdotium” definiam a organização dos três estados.

Na concepção historicista do séc. XIX estas bases foram apresentadas como os contributos da Grécia, de Roma e da religião judaico-cristã. E no séc. XX, após o aviso prematuro do declínio do Ocidente, os termos foram revitalizados na NATO, considerando-se a vertente religiosa assumida pela defesa da dignidade humana. E agora mesmo em 2004, na versão minimalista do Tratado Constitucional Europeu, refere-se os valores do humanismo, do respeito pelo direito e da decisão de forjar um destino comum.

Esse é o Ocidente que conta e a ser esfregado na cara dos Kagans do nosso tempo, dizendo-lhes que Camões, que percebia em primeira mão de defesa nacional e de letras e artes, não via problema nenhum em afirmar que os Portugueses descendem de Vénus e de Marte, unidos contra o intrigante e intriguista Baco que vem do Oriente.

Efectivamente, os desacordos sobre o Iraque não impedem a aliança ocidental. A NATO continua a ter a missão de facilitar a reconciliação europeia, integrando-a na segurança transatlântica. A estabilidade democrática na Europa central e do Leste é uma tarefa a prosseguir e o alargamento da segurança global para a área euro-mediterrânica é cada vez mais necessário.

Claro que há problemas pelo caminho. A luta anti-terrorista não deve distrair a atenção ocidental do projecto de uma Europa unida e livre. Os EUA só perdem se pretenderem refazer o mundo à sua própria imagem. O multilateralismo não pode ser uma fachada para o anti-americanismo. Sem acordo na aliança ocidental, não se podem esperar da ONU soluções eficazes. São desafios para os dirigentes ocidentais que têm as instituições capazes para os enfrentar.

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