segunda-feira, julho 05, 2004

O LADO PELICANO DO HOMEM

Por Paulo Teixeira Pinto

I. Aquilo que mais distingue o homem não é apenas a sua capacidade para pensar mas também a sua liberdade para dar. Logo, o homem é tanto mais humano quanto mais capaz for de, pela sua vontade livre, ultrapassar a condição bestial que o aprisiona como predador. Daí resulta que o homem que se dá ao próximo está desde logo a doar uma benfeitoria primeira a si mesmo. E se o fizer com sacrifício próprio isso apenas quer dizer que foi capaz de se dar até para além do último limite. Isto é, aquele que o liberta da derradeira amarra à condição animal.

II. A mãe dos pobres aprendeu, da boca de um moribundo que lhe pendia dos braços, nas miseráveis ruas de Calcutá, que era possível viver como um cão para vir a morrer como um anjo. Por isso ensinou que o sentido único da vida não é outro que não o de dar. Dar quanto? A resposta foi clara: “dar até que doa”.

III. Na verdade, quando um homem é capaz de se dar com radicalidade, ou seja, até à raiz, essa atitude resulta do sofrido domínio da vontade sobre o instinto. Mas é aí, nesse preciso instante em que se alcança aquela prevalência, que a capacidade para pensar se funde com a liberdade para dar. E enquanto dura tal momento o homem é-o plenamente, deixando de ser só um animal racional.

IV. Porque não acredito no mito do bom selvagem, tenho uma concepção pessimista do estado humano natural. Não é, evidentemente, a sociedade que perverte o homem, ao invés do que julgava a ingenuidade iluminista. Mas é devido aos outros, mais do que a si próprios, que os homens modernos são animais domesticados e não puros selvagens. Ainda e sempre capazes de todos os horrores, com toda a certeza. Mas também, por vezes, capazes da generosidade. E são estas oportunidades, mesmo que raras, que fazem toda a diferença. Tenho por isso, apesar de tudo, uma atitude optimista perante a vida.

V. Mas mesmo quando procura o bem, o homem só o faz, normalmente, porque foi educado para tal ou porque atendeu a uma inclinação para aquilo que o transcende. Ao contrário do pelicano, a quem a simbologia profana ou sagrada venera pela sua natural apetência para o sacrifício de si em benefício de outrem. Porque quando o pelicano bica a própria carne para dar de comer às crias do seu sangue, não o faz por sacrifício. É assim a sua natureza. E esta é, nessa medida, superior à do bom selvagem que se julga naturalmente bom.

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