sexta-feira, janeiro 07, 2005

A Chefia do Estado

por João Bettencourt

Na história milenar da Monarquia, evoluiu-se do poder total para a total ausência de poder. Não quer isto dizer que o regime monárquico se adapte sem critério à evolução dos tempos, como uma massa informe e fluida se adapta aos continentes.

O que é facto é que, no apreço das contingências, o regime monárquico consegue de uma forma tão profunda como eficaz, encontrar a melhor forma de corresponder ao interesse comum e à filosofia da construção democrática.

O poder total, quando todos os outros poderes eram incipientes ou inexistentes; a ausência de poder, quando todos os poderes atingiram o ápice da sua expressão própria, consagrada directa ou indirectamente no voto popular.

Como é sabido, o chefe de Estado no regime monárquico apenas modera os poderes existentes, tempera as suas expressões e prepara a recuperação das crises quando estas eclodem.

A intervenção do Rei na vida política está necessariamente prevista e obedece ao imperativo das exigências que o quadro normativo enumera. Para além das normas, é da sua própria natureza a receptividade ao aleatório, às vontades marginais que não conseguem erguer a voz nos areópagos, aos interesses e necessidades dos que sofrem, dos indigentes ou dos banidos numa sociedade que sabemos estratificada pela pressão dos factores económicos.

A República não presidencialista aproxima-se da filosofia do regime monárquico com a diferença óbvia da eleição e não da designação ou aclamação do Chefe do Estado. Será que essa eleição é de facto uma mais valia democrática em relação à sucessão dinástica?

Não considero que seja uma mais valia. Em primeiro lugar, porque os denominados eleitores do Presidente que vence as eleições, ao mínimo pretexto sempre se reclamam dos vínculos, da orientação programática e do próprio compromisso do programa eleitoral exigindo comportamentos, atitudes e orientações como contrapartida do voto que outorgaram. Por outro lado, os políticos que acedem ao cargo transportam na sua biografia quase sempre uma fervorosa militância partidária que, consciente ou inconscientemente, acaba por condicionar os seus actos. É vulgar verificar-se no exercício do cargo um protagonismo tão vivo que dir-se-ia uma procura artificial de conteúdo para um cargo que efectivamente é de conteúdo reduzido, o que, numa situação mais sensível, pode conduzir ao súbito agravamento das situações e até à lesão constitucional, com evidente prejuízo do sistema democrático.

Naturalmente este comportamento que é encarado com normalidade no sistema republicano, não favorece a isenção e a independência que no regime monárquico se configura como essencial e que a própria sucessão dinástica incrementa ao induzir, pela educação e formação do Príncipe, estes princípios como idiossincráticos nos contornos da personalidade Real.

Esta, sim, é uma mais valia nunca superável no sistema republicano, a que acresce a total independência, quer dos interesses, quer do poder estabelecido, porque o Rei persiste para além dos interesses, dos poderes e das circunstâncias.

A monarquia, contrariamente ao que é vulgarmente propalado, não é um teatro, é uma atitude natural e moral no estatuto de uma família que reúne as condições históricas da continuidade, correspondendo por isso a uma linha dinástica, que respeita de uma maneira profunda e total o voto popular no curso das instituições que de facto exercem o poder.

Em Portugal, qual é a possibilidade da restauração do regime monárquico ou, como querem alguns, a sua instauração em moldes hodiernos?

Muitos estão convencidos que tal depende do carisma do Chefe da Casa Real como se se tratasse de um movimento político de base doutrinal que desce à praça para ganhar o seu lugar natural. É óbvio que a personalidade do Chefe da Casa Real não é despicienda, pois o teor do seu compromisso, a fidelidade aos princípios e o entusiasmo pela causa, são determinantes na fé dos prosélitos; mas o essencial é a acção dos monárquicos, o empenho no esclarecimento, na demonstração da bondade da opção, do combate leal aos equívocos, dislates e torpezas que ganharam terreno ao longo de noventa anos de República que, apesar de recheada de vicissitudes e crises, conseguiu passar a ideia do seu teor dogmático, abjurando o regime monárquico como se este fosse o inimigo da democracia.

Algum erro houve ao longo destes mesmos anos de militância, para que a ideia não ganhasse peso suficiente e se mantivessem preconceitos absurdos acerca da instituição monárquica.

Por outro lado, a convivência descomprometida com temas e símbolos tradicionais da Monarquia sem que a seriedade e a exigência do compromisso sejam convocados, acomodou grande parte dos monárquicos à indiferença, sobretudo aqueles em cujo seio familiar as responsabilidades históricas deviam ser mais vivas.

Este é talvez um tema de reflexão para as associações monárquicas existentes. Instaurar uma nova militância que viva menos de bandeiras e mais de afincada persistência nos objectivos, que leve à cidade, aos “media”, às universidades, às empresas e às assembleias a evidência da necessidade de mudança para um novo sistema. A Monarquia não pode ser adiada na vida das instituições sobretudo quando os desafios estão à porta e as crises do sistema republicano são perfeitamente visíveis.

Para Portugal, cujo lugar no mundo contemporâneo associado à imensa carga histórica que o conforma, está mais ameaçado que nunca, esta necessidade é talvez mais determinante do que qualquer observador menos atento alguma vez suspeitaria. Assim o entendam os monárquicos.

Tudo o resto, até a surpresa, virá por acréscimo.

Setembro de 2004

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