segunda-feira, maio 23, 2005

O Brasil restituído

Por Francisco de Elias de Tejada y Spinola


Quando se sente a cidade de Salvador da Bahia, na gozosa luminosidade de suas cores indescritíveis, tem-se a impressão de Ter topado de improviso com toda a tradição do Brasil; ou seja, com o elemento que diferencia os brasileiros dos demais grupos humanos. Ouro Preto é uma cidade portuguesa do século XVIII, acostada à sombra do Itacolumi e venturosamente respeitada pelo grande século nivelador; Congonhas do Campo e Sabará esgotam sua força evocadora nos olhos do profeta Jonas, queimados em pedra viva pela graça fulgurante de Deus, e no equilíbrio soberbo da Igreja do Carmo persuasiva de indecifráveis serenidades, respectivamente; Rio de Janeiro é a sequela de uma natureza belíssima e rica de contrastes; São Paulo, hoje, é um grande mercado internacional...

Somente aqui, na Bahia, é possível entender a alma do Brasil, com todo o colorido humano que falta em Minas Gerais e com toda a densidade humana que falta no Rio de Janeiro. As igrejas expressam no seu mudo dizer arquitetônico toda a graça do humanismo classicista da Bahia; as torres cantam a canção de um ontem que não se deixou de viver; as gentes traduzem a universal amplitude da tradição católica do Brasil e a coloração diversíssima da paisagem única. Porque na Bahia a paisagem das almas guarda correspondência com a paisagem natural, aqui a vida se prende num equilíbrio de clássicas serenidades e aqui os olhos contemplam a unidade suprema do belo segundo a fórmula platônica de uma harmonia de facetas confinante na quimera da cor.

Quando se estudou Portugal e o Brasil com profundo carinho de compreensão segura, a contemplação da Bahia adquire rasgos de entranhável emotividade. Não vejo, por isso, o mero sabor de uns pratos saborosíssimos, nem a mera expressão de um folclore típico; antes, penetro pelos caminhos recônditos da espiritualidade brasileira e vou encontrar o mesmo sentido heróico e nobre dos místicos fidalgos que cavaram os alicerces do Brasil. É que, na Bahia, não se visita um museu, como em Ouro Preto; é que na Bahia se vive o ontem eterno do Brasil. Em meus passos por todos os rincões do planeta, voltarei sempre os olhos da alma a esta terra bendita onde o brasileiro se me revelou com toda a sua dimensão ibérica e anti-européia, o que a dizer com toda sua dimensão anti-francesa e anti-norteamaricana. E constantemente sonharei com a loucura artística que fez da igreja de São Francisco uma selva tropical dourada e avassaladora, do mesmo modo pelo qual nossos pais comuns fizeram do universo uma loucura de façanhas no afã desordenadamente barroco de proclamar sua fé de fidalgos frente à fé dos mercadores que reinava ao norte dos Pireneus. Sempre, porque na Bahia se fez carne de ar e evocação de pedra a tradição universal que ata a verdura permanente do Brasil à Ihanura desértica de Castela. Quem vê o Brasil como eu o vejo, encontra renovada a festa que Lope de Veja celebrou numa comédia imortal; acha de novo, no foro íntimo da alma, o Brasil restituído.

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