segunda-feira, maio 09, 2005

Reconhecer a verdade e o erro para viver

por Mário Pinto*

1.«HABEMUS PAPAM». De múltiplas maneiras, sobretudo pela comunicação social global, o mundo interessou-se pela morte e sucessão de João Paulo II. Uma parte do interesse dos média terá sido «dar às massas aquilo que elas querem». Mas vi e li muitas e diferentes contribuições que me impressionaram pela atenção séria e sem segundas intenções que demonstravam ao reflectir sobre João Paulo II, e agora sobre Bento XVI. Em suma, sobre a Igreja de hoje e «o despertar do religioso».

2.Claro que há uma Igreja ad extra e uma Igreja ad intra, como se disse insistentemente durante o Concílio: uma Igreja voltada para fora, para todos; e uma Igreja dobrada sobre si mesma. Dois momentos solidários, mas distintos: de anúncio, testemunho, pastoral, aquele; de identificação, de meditação e ordenação de vida interior, estoutro. Nos tempos que correm, a Igreja sofre uma grande pressão externa, mediática e de opinião, que não lhe pede apenas que fale ou faça de certo modo; mas, mais do que isso, que mude interiormente. É impressionante, hoje, o número de pessoas que, declarando não professarem a fé católica, contudo opinam insistentemente defendendo que a Igreja não devia ser assim, mas antes «assado», em matérias de grande transcendência para a sua dimensão divina-humana.

3. E VÓS? QUEM DIZEIS VÓS QUE EU SOU? Um dia (conta-se-nos nos Evangelhos sinópticos), Jesus Cristo perguntou aos seus discípulos: «Quem dizem os homens que eu sou?» Eles responderam, exemplificando com várias correntes de opinião: «uns dizem que és João Baptista; outros que és Elias, outros ainda que és Jeremias ou um dos Profetas». Então Jesus dirigiu-se-lhes de novo, perguntando-lhes: «E vós? Quem dizeis vós que eu sou?».
Foi a esta pergunta que, em união com todos os apóstolos ali presentes, Pedro respondeu: «Tu é o Cristo de Deus». Essa é a pergunta fundamental a que a Igreja tem de responder, também através de Pedro, sempre e a cada momento, ao longo da história. Para um católico despojado de si, não haverá outra melhor atitude de fé e esperança no Espírito senão esta, perante a eleição de Ratzinger para sucessor de Pedro, como Papa Bento XVI, pelos cardeais. Sem com isso prescindirmos de todas as nossas potências humanas da razão, que nos une e nos separa, e da fraternidade universal, que só pode unir-nos.

4. A DECADÊNCIA VEM DA «RACIONALIZAÇÃO» DO ERRO. No seu livro «Samuel. Profeta religioso e civil», o Cardeal Martini, que foi até há pouco arcebispo de Milão e esteve no último conclave como uma das figuras mais mediatizadas, famoso biblista, defende a tese de que a causa da decadência, seja moral, civil, política ou religiosa, está na «racionalização» do erro. Note-se que, na ordem espiritual e em termos teológicos, o erro é o pecado. Enquanto houver abertura e humildade para reconhecer o erro (ou o pecado), haverá abertura para novo ensaio e correcção (arrependimento e emenda). Haverá portanto regeneração. Esta capacidade de regeneração termina quando se «racionaliza» (entenda-se: nega enquanto tal) o erro (o pecado). Porque, a partir daí, a vida (seja qual for a sua forma: biológica, social, política, moral) deixa de poder ter regulação cibernética, «retroguidage», reequilíbrio homeostático. E quando a homeostase falece, sobrevém necessariamente a doença (decadência) e a morte (extinção).

5. A LEI DA HOMEOSTASE. A lei da homeostase foi formulada para exprimir o estado de equilíbrio orgânico verificado nos animais superiores vivos, constantemente mantido por complexos sistemas de regulação cibernética que, por assim dizer, combatem um constante processo de morte (morte celular, desarranjos, agressões orgânicas, etc.) através de uma constante resposta pela reposição do equilíbrio funcional da vida ou da harmonia orgânica. A lei da homeostase é a lei da luta da vida contra a morte, um processo constante por toda a parte e em toda parte.

6. A TEORIA POPPEREANA. Ora, o que é claramente verificável na ordem dos organismos vivos superiores, pode transpor-se para outras ordens, designadamente para a vida intelectual e científica, política, moral e espiritual. A teoria poppereana do ensaio, erro e correcção parece-me uma expressão homeostática e cibernética para a vida científica; mas vale também para a vida social e moral. E é essencialmente esta a ideia do conceito de «sociedade aberta». Quando os sistemas de regulação (baseados no reconhecimento do erro e no subsequente impulso para a correcção) deixam de reconhecer o erro (seja porque se dá uma dogmatização no pensamento «politicamente correcto», seja porque se dá uma dogmatização no relativismo), pára necessariamente o processo da correcção e da restauração do equilíbrio e da vida; o organismo entra num processo irreversível de doença e morte, porque cessou a regeneração cibernética.
Parece-me, assim, inteiramente correcta, não apenas no domínio da ciência, mas também no da vida civil, moral e religiosa, a teoria poppereana do ensaio, do erro e da nova tentativa. E encontro nela uma convergência sedutora com a tese do Cardeal Martini: a decadência social, política, moral e religiosa, começa com a «racionalização» do erro (ou do pecado) - por outras palavras, com a dogmatização que recusa o reconhecimento do erro (ou do pecado), e impossibilita por isso a correcção (arrependimento e emenda). Digamo-lo, em termos mais actuais: com o relativismo ético e moral que afirma que tudo vale igual a tudo, inclusive ao seu contrário. Teologicamente, tal corresponde ao pecado contra o Espírito Santo. Único que não pode ser perdoado (disse-o Jesus Cristo). Percebe-se bem porquê.

7. A RELIGIÃO. A consequência é a perda das referências salutares, uma vez que ficam racionalmente indiferenciadas; e a tendencial redução do racional ao utilitarismo, ou ao sensualismo, à lógica da gratificação imediata, ao egoísmo crasso que recusa todo o sacrifício, ao relativismo. Por exemplo: o aborto livre e pago pelo Estado; as manipulações genéticas e consequente comércio de «material humano»; a eutanásia e suas inevitáveis derivações eugénicas; enfim, um primarismo consumista global: «comamos e bebamos que amanhã morreremos».
À escala mundial, em que a questão já se põe, só vejo (a menos que sobrevenha uma catástrofe aguda que nos obrigue a viver uma expiação e a reverter assim forçadamente este consumismo irracionalista e relativista), a força das religiões e das espiritualidades para garantir, pela convicção interior, aquela «remoralização» da sociedade que Fukuyama confia ao simples e laico reconhecimento social e político da decadência. A reacção deste consenso espontâneo exterior de Fukuyama não é para mim garantia nenhuma, perante a lei do paradoxo de Olson, segundo a qual todos dirão para si próprios intimamente: «acho muito bem que os outros procedam virtuosamente; mas exceptuando eu». Só as religiões anulam esta lei paradoxal.


* Professor Universitário

(in Público, 9 de Maio de 2005)

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