sábado, novembro 26, 2005

Sobre a Decadência do Debate de Ideias

Com a devida vénia, reproduzimos da página da Associação dos Professores de História ( http://www.aph.pt/opiniao/index.html):

Sobre a Decadência do Debate de Ideias
Por Paulo Guinote

«A apresenta uma opinião, enquanto B pensa na que irá injectar logo que possa, de forma decente. Isto é uma troca no sentido em que “trocamos” saudações: oferecemos uma fórmula e é-nos oferecida outra, mas geralmente vamo-nos embora com a nossa

J. Barzun, The House of Intelect, p. 63.


Há mais de quatro décadas, Jacques Barzun ocuparia boa parte de um dos capítulos da sua obra The House of Intelect (1959, 22002) lamentando o declínio da conversa como forma privilegiada para o debate de ideias e para o exercício produtivo das nossas capacidades intelectuais. Segundo ele o hábito de conversar intelectualmente desapareceu quase por completo na sociedade ocidental. Em vez de construirmos uma conversa, articulando o nosso raciocínio no dos nossos interlocutores, analisando argumentos, avançando para novas ideias, limitamo-nos a "trocar ideias", no sentido comercial do termo. Toma lá a minha opinião, dá cá a tua, e pronto, já está, ficamos à mesma na nossa e tudo fica na mesma.

A razão para esta situação, segundo Barzun, está naquilo a que chama a ascensão das “maneiras” dos “bons modos” que, a coberto de pretensos ideais democráticos, parece querer a todo o custo evitar os problemas e os confrontos, em busca de um consenso que a ninguém desagrade e a todos satisfaça.

Realmente, embora escrito em 1959, isto retrata a actualidade da nossa vida intelectual e académica de forma atrozmente rigorosa. Ninguém está para pensar sobre o que os outros dizem. Apenas se aceita ou recusa, ponto final, sem mais elaboração. E quando as ideias diferem, o mais habitual é uma de duas soluções, ou ignorar as opiniões adversas ou então atacá-las como ofensivas sem discutir os seus argumentos. Agora discutir ideias, analisá-las, aperfeiçoá-las, modificá-las perante os outros, isso é que não porque parece ser sinal de fraqueza das nossas próprias convicções ou crenças.

Esta atitude traduz-se, na prática, numa crescente esterilidade do que passam por ser os “debates” de ideias no nosso país da vida política à académica mas passando por quase todos os aspectos da nossa vida. Os danos que este autismo traz manifestam-se, em minha opinião, em duas situações de igual modo prejudiciais ao desenvolvimento intelectual da nossa sociedade:


Por um lado, a cristalização das divisões entre as várias áreas científicas ou disciplinares em que o conhecimento humano se foi fragmentando, particularmente após a crítica pós-moderna ao paradigma herdado do positivismo. Da macro-divisão primordial entre as chamadas ciências físico-naturais, ditas “exactas”, e as ciências sociais e humanas, às subdivisões no interior de cada disciplina/ciência, o conhecimento humano foi ficando cada vez mais compartimentado e foram ficando cada vez mais reduzidas as possibilidades de debate de ideias em virtude dos antagonismos desenvolvidos pela competição entre as cada vez mais especializadas micro-áreas do conhecimento. Apenas a título de exemplo, recuperemos o movimento de progressivo estilhaçamento das Ciências Sociais e Humanas que, da autonomização dos campos próprios da Sociologia, da Antropologia ou mesmo da Psicologia em relação à Filosofia, à História ou mesmo à Geografia, passou para um mosaico quase infindável de micro-variantes que, mesmo quando ditas transversais e transdisciplinares, só sentem que a sua identidade está construída quando delimitam ferozmente as suas fronteiras e uma linguagem própria em relação aos campos do saber mais próximos. Aqueles que pretendem, sob o manto da construção de um “novo paradigma” ou de um “paradigma emergente”, alcançar uma nova unificação do saber recuperando o “senso comum” como via válida para o conhecimento científico, parecem esquecer que um paradigma não é meramente uma nova teoria concorrente às preexistentes, mas sim o conjunto de teorias que, de uma forma mais ou menos articulada, constituem o corpo de “conhecimento” aceite enquanto tal pela maioria da comunidade científica num dado período. E, neste sentido, estamos actualmente, muito longe de um paradigma aceite pacificamente pela maioria de uma comunidade científica fragmentada e pouco dialogante.

Por outro lado, a inutilidade de muitos encontros ditos “científicos” entre especialistas de determinadas temáticas em que cada um se apresenta munido das suas opiniões, as quais são expostas com maior ou menor rigor e/ou brilhantismo mas que, em boa verdade, acabam por nunca ser verdadeiramente contraditadas mas meramente trocadas. Se não são apenas sumariamente elogiadas, por obrigação formal da ocasião, são criticadas pelos seus oponentes mas de uma forma que inviabiliza o seu eventual aperfeiçoamento através de um debate sério. Neste caso, as divisões de carácter disciplinar dão lugar à competição entre especialidades e, muito mais grave, às inimizades pessoais que se traduzem num isolamento de grupos de indivíduos com interesses comuns, que lutam por um melhor posicionamento na comunidade intelectual/académica, degladiando-se entre si sem nunca confrontar verdadeiramente as respectivas posições.

No caso da História, que aqui mais nos interessa e ocupa, este movimento para a hiper-especialização começou por cruzar a segmentação cronológica de maior ou menor amplitude com as divisões temáticas de maior (História Social, História Económica, História Política, História Cultural, História Institucional, etc, etc) ou aparente menor ambição (História dos Descobrimentos, História das Mulheres, História das Técnicas, História deste ou daquele conflito militar, entre muitos exemplos possíveis).

Um pouco à semelhança das clivagens políticas, à medida que a fragmentação cresce, maiores são os muros que se levantam contra o exterior, e quanto mais específica a área de estudo (por exemplo, a penetração dos Jesuítas no Tibete entre 1570 e 1580) maior é a animosidade contra a concorrência próxima (a influência franciscana no Tibete entre 1575 e 1585, continuando no nosso exemplo caricatural). E também à imagem da vida política, acaba tudo por culminar no plano pessoal do relacionamento entre investigadores de uma mesma micro-área de trabalho ou de micro-áreas contíguas.

Nunca encontrei reacções tão negativas e violentas ou atitudes de mais ostensiva ignorância mútua como entre estudiosos de um mesmo tema que, sentindo-se ameaçados, baseiam o seu comportamento em estratégias de uma agressividade mais activa (ataque pessoal sem debate de ideias) ou passiva (manifestação de desconhecimento do trabalho de outrém como forma de evitar a sua discussão).

Esta atomização, por paradoxal que pareça, é reforçada pelos comportamentos de grupo em que os investigadores se envolvem como mecanismo de defesa perante o que acham ser ameaças externas. Funcionando em grupo num sistema que lembra as velhas clientelas romanas, os indivíduos sentem-se mais protegidos e, em simultâneo, mais poderosos, conforme a notoriedade do(s) seu(s) patrono(s). Neste sistema, como parece natural, a protecção é muitas vezes feita à custa de um pouco da nossa liberdade (neste caso, a intelectual) e as heterodoxias são duramente punidas.

A tradução prática deste tipo de comportamentos, para além da trivial e secular pura maledicência mais ou menos dissimulada, encontra-se na forma como funcionam as poucas revistas da especialidade que sobrevivem entre nós (com dificuldades nascidas do público diminuto de fiéis a que se dirigem), nos mecanismos de selecção de colaboradores ou mesmo da redacção de recensões ou de divulgação de projectos de investigação em curso. Como é óbvio, seleccionam-se e divulgam-se apenas os “nossos”, a menos que seja para sumariamente criticar de forma destrutiva os “outros”, para isso servindo o mais ligeiro pretexto ou lapso encontrado. No caso particular das recensões, é curioso como as feitas sobre as obras dos “nossos” são meros resumos encomiásticos do seu conteúdo, quase podendo ter sido feitas pelos próprios autores para colocar na contra-capa do livro a pedido da editora, enquanto as que são feitas sobre os “outros” passam quantas vezes apenas por detectar o pequeno pormenor errado ou a velada acusação de ignorância e incompetência. Apenas para exemplificar, há um ano ou dois, numa revista da especialidade, três bons investigadores com responsabilidades na História da Expansão Portuguesa envolveram-se em dura polémica sobre a qualidade da respectiva competência científica, usando como argumentos fundamentais para a “discussão” questões de favores pessoais concedidos/recebidos, mas raramente confrontando ideias, conceitos ou métodos de trabalho.

Esta agressividade é o reverso da atitude que postula o silêncio sobre a “concorrência” como forma de a tornar invisível. Neste caso, os exemplos seriam ainda mais fáceis de encontrar, desde os casos em que um(a) especialista de determinada área de estudo é convidado a apresentar um ponto da situação da pesquisa realizada à mera leitura das bibliografias de obras tidas como “de referência”.
Em qualquer dos casos, aquilo a que se procura fugir é a um verdadeiro confronto de ideias, ao debate em torno de concepções diferentes sobre um mesmo fenómeno ou assunto e a uma eventual reavaliação das nossas próprias convicções perante o seu confronto com outras alternativas, em resumo, é a fuga exactamente ao que devia constituir o cerne do trabalho intelectual. O contraditório não é necessariamente uma ameaça, mas antes um mecanismo indispensável para o progresso.

Infelizmente, tanto a agressividade crítica não fundamentada como o ignorar ostensivo das vozes discordantes, só agravam o isolamento paroquial a que se têm vindo a votar muitas das áreas de especialização não só da História como do próprio conjunto das Ciências Sociais e Humanas, ainda seduzidas pelo brilho retórico do paradigma pós-moderno e incapazes de ultrapassar o seu relativismo, mesmo quando recorrem às mais elaboradas construções teóricas para esconder o vazio do seu conteúdo. Aliás, talvez a decadêncida do debate de ideias seja consequência directa e inevitável desse mesmo vazio.

Paulo Guinote

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