quarta-feira, fevereiro 22, 2006

QUE REGIME É ESTE?

CARTA DO CANADÁ

por Fernanda Leitão


No princípio foi um golpe militar que, em pouco tempo, ficou na posse de um grupo de políticos civis. Estes, despudorados e enlouquecidos pelo poder, instalaram uma ditadura dos partidos. Foi assim que o país entrou numa guerra mundial que ceifou milhares de jovens portugueses, que deixou estropiados e gaseados outros milhares. O pão escasseava na mesa do povo. O desemprego era em massa. Os governos instalavam-se e caíam num rodopio. Padres e religiosos foram presos, enxovalhados, expulsos. Os bens da Igreja eram transformados em negócios de meia dúzia (dali a pouco tempo os bolchevistas haviam de fazer o mesmo na Rússia). Os opositores eram mortos ou partiam para o degredo. Os barcos levavam milhares de homens para a emigração, já que camponeses e operários estavam reduzidos à miséria. A liberdade de expressão existia para insultos, calúnias e outras perfídias, por parte dos jornais seguidistas dos governos, ao passo que os independentes eram atacados à bomba. Havia revoltas e tiros todos os dias. A dívida pública era medonha. O descrédito internacional do país, era um facto. O ultramar, semi-abandonado, era inundado por “professores laicos”, de garantido servilismo ao regime, enquanto que eram expulsos os missionários e destruída a sua obra de muitas dezenas de anos.
Outro golpe militar destronou o anterior. Em pouco tempo, transformou-se numa ditadura civil de direita, ao gosto do que se passava na Itália, Alemanha e Espanha. Ditadura respaldada por forças armadas despromovidas por um pretorianismo funesto, por uma hierarquia católica de vistas curtas, por uma élite empresarial sem rasgo e avessa ao risco, por uma polícia política boçal e poderosa. Respaldada, até, a ditadura, por uma oposição que levou anos a escrever cartas e manifestos, ao mesmo tempo que tomava o poder na área da cultura, com o que fez uma ditadura paralela à governamental, uma oposição burguesa, instalada, na maior parte dos casos orquestrada pelos interesses internacionais. Por ausência de diálogo e de planificação progressista, os cofres públicos encheram-se, o ultramar tornou-se vulnerável, a economia era coutada de meia dúzia de famílias, no ensino era a paz podre, a guerra colonial aconteceu, a emigração em massa foi um facto. Quando a ditadura apanhou com um ramo de cravos pela cara, caíu de costas, desamparada, já que tinha contra si a esmagadora maioria da população.
Novo golpe militar tomou o poder para logo, por inépcia, dar origem a uma curta mas inesquecível ditadura pró-comunista. Inesquecível pela brutalidade, pela incompetência, pelo abuso, pelo desrespeito aos direitos do homem, pela sanha persecutória e até pela mais alarve falta de educação. Durou o tempo necessário e suficiente para se entregar o ultramar inteiro a grupos que garantissem, mano a mano, a fidelidade à então União Soviética e às multinacionais de rapina. Cerca de um milhão de pessoas, desmunidas de tudo, rumou ao exílio. Centenas de milhar de mortos empaparam de sangue as antigas colónias, trazendo para o terreno a fome crónica, as doenças já erradicadas, o tribalismo cego e desenfreado. Ao mesmo tempo, procedeu-se à nacionalização de tudo quando parecia aos novos senhores luzir de opulência. A emigração voltou a ser um facto. O ensino ficou de rastos, graças a aventureiros que dele fizeram trampolim político, um ano atrás do outro, até se chegar ao pormenor de tirar as cruzes das escolas, enquanto que, no tão falado império da Língua Portuguesa, se trabalhava em faz de conta, promovendo compinchas incompetentes, proporcionando a muitos reformas escandalosamente fraudulentas, espezinhando ou ignorando aqueles que, em silenciosa coragem, tudo faziam para salvar do naufrágio, nas comunidades, a língua de Camões.
De inépcia em inépcia, de compadrio em compadrio, o desemprego tornou-se crónico, a produtividade quase nula, a habitação uma agonia para quem tem os bancos à perna por dezenas de anos, a saúde um total descalabro. Ganhou-se em corrupção e roubalheira o que se perdeu em moral e dignidade colectivas. A emigração voltou a acelerar. O descrédito da coisa pública é completo, indo de alto a baixo na hierarquia do regime, para o que muito tem contribuído uma justiça que nem ao de leve incomoda os criminosos. A completa desmoralizção do povo é um facto, graças a uma política de constante circo, ampliada pelas facécias dos cómicos do regime, mancomunados com os fregueses das revistas do chamado jet set. Ninguém acredita em nada.
Que regime é este? É aquele que saíu inteirinho do crime cobarde cometido, na rua do Arsebal, nas pessoas do Rei e do Príncipe herdeiro. Aquele a que Eça de Queiroz chamava “balbúrdia sanguinolenta”, aquele que a essa dívida de sangue juntou as dívidas de todos os crimes posteriormente cometidos. É a República Portuguesa. Ou à portuguesa.

sábado, fevereiro 18, 2006

Guerras «religiosas», não obrigado!

Por Jaime Nogueira Pinto

Os que temos fé - e aqueles que não a tendo, têm o sentido do sagrado e do respeito pelo sagrado dos que estão connosco nesta «civitas», que é o mundo - não nos podemos deixar, como nos Balcãs, arrastar para uma guerra «religiosa», provocada e chefiada por ateus!


UM tempo «pós-moderno» que quer acabar e acha que acabou com a religião, que desconstrói os mitos e os símbolos, que dessacraliza e desencanta o mundo e a História, não ao modo dos grandes revoltados, de Sade a Nietzsche e Marx, mas de uma forma pícara, ordinária, patética, de pensadores «soft», de sibaritas pedófilos, de humoristas boçais, vê-se, de repente, confrontado com o «choque das civilizações».

Bons, Maus e Vilões

E que civilizações? O cliché dos fazedores de «opinião» direitinhos é de um lado a civilização esclarecida, aberta, democrática, com todos os «valores bons» - o humanismo laico, a democracia participativa, a cidadania vigilante, os direitos do homem! E do outro os fanáticos do mundo árabe, mergulhados na Idade Média, no obscurantismo, na religião, governados por autocratas, a queimarem bandeiras da UE, a apedrejarem consulados, de barbas, mal vestidos, aos gritos de Alá é grande!
Contente, o comentador de serviço arranja os bons, os maus e os vilões da história:
Os bons são os progressistas de todos os quadrantes, que têm o valor de não ter valor nenhum, que absolutizam o relativo; que não acreditam em nada. Mas incomodam-se por o Papa mandar na Igreja, por os «gays» não poderem adoptar, por o Inferno se manter.

Os maus são os tais árabes tradicionalistas, religiosos, nacionalistas e todos os povos que ainda não abraçaram o modo de vida preconizado pelos bons.
Finalmente, os vilões, os piores de todos, são os ocidentais - americanos, europeus, católicos, protestantes, agnósticos - que não seguem o pronto-a-pensar humanitário e globalizante do «só é proibido proibir». Os que entendem que para haver civilização e política - que vêm de cidade («civitas», «polis») - é preciso haver valores objectivos, mitos e ritos, convicções, hierarquias, fronteiras, exércitos. E que dizem que a utopia libertária é a receita para os demagogos, para a anomia, para o vale tudo e para a tirania que se lhe segue.

Mas a História não é um filme cor-de-rosa em que o que vem é sempre melhor que o que foi, como julgam os que se admiram de os Romanos pensarem e terem água corrente, acham que a razão começou no mundo com Voltaire e a Revolução Francesa e em Portugal com os capitães de Abril e o dr. Soares. Para trás, só trevas!

Os crentes no Deus do Livro - cristãos, muçulmanos, judeus - têm um sentido do sagrado que é, coerentemente, o seu primeiro valor. Respeitam e amam Deus sobre todas as coisas e os valores - políticos, de família, de amizade, de solidariedade - são para eles um reflexo e uma continuação dessa ligação ao divino. Por isso, uma ofensa à religião como representar Deus, Cristo ou Maomé grotescamente, é uma ofensa pessoal ao que têm de mais querido.

A terra e os céus

No Ocidente, a separação do Estado e da Igreja, do político e do religioso, vem da Reforma e da construção do Estado moderno, ficando o poder político desligado do poder espiritual como condição da paz civil. Foi assim de Nantes a Vestfália e até hoje. E demo-nos bem com a receita.

Mas a descristianização na Europa e o «progressismo» secularizante querem transformar a Igreja numa espécie de Liga do bem-fazer ou agência humanitária tipo UNESCO, retirando-lhe o seu papel de mediadora do sagrado, entre a Terra e o Céu. Para isto contam também a falta de coragem e os complexos de muitos cristãos. O que não se passa nos Estados Unidos, nem nas igrejas novas das Américas e de África ou nas igrejas perseguidas e de missão das comunidades minoritárias na Ásia.

No mundo islâmico, o renascimento religioso, aliado a um sentimento político de nacionalismo defensivo e solidário - na linha dos Irmãos Muçulmanos - está a levar ao poder grupos como o Hamas, com que os ocidentais vão ter que contar.

Porque a partir do fenómeno árabe corânico - das cidades da Síria e do Iémen e do nomadismo do centro da Península arábica - floresceram culturas fortes militarmente, que fundaram impérios, que chegaram à Península Ibérica, que tiveram a sua tecnologia e a sua literatura. A decadência política dos Estados islâmicos, a partir do século XVIII incapazes de enfrentar a dinâmica político-militar ocidental, é sentida pelas novas elites do mundo islâmico, como um estigma a superar. A ideia de que os ocidentais lhes querem impor os seus «não-valores», o secularismo e o hedonismo das massas que é o consumismo, torna-nos odiosos aos seus olhos!

Não percebemos estas reacções, porque no Ocidente nos habituámos a deixar agredir os nossos valores cristãos naqueles «media» públicos, pagos (também) com os nossos impostos, ou, ironia suprema em Portugal, num canal originalmente católico, onde hoje num programa de «soft-porno», a despropósito, se faz uma palhaçada patética do Pai Nosso!

Não podemos deixar que as manipulações da rua árabe - orientadas por radicais cínicos sem crença alguma - e as provocações dos fundamentalistas laicos do Oeste, nos envolvam, a cristãos e muçulmanos, numa guerra religiosa.

Os que temos fé - e aqueles que não a tendo, têm o sentido do sagrado e do respeito pelo sagrado dos que estão connosco nesta «civitas», que é o mundo - não nos podemos deixar, como nos Balcãs, arrastar para uma guerra «religiosa», provocada e chefiada por ateus!

fonte: Expresso, 18 de Fevereiro de 2005

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

A Cruz profanada em Espanha

CIDADE DO VATICANO, terça-feira, 7 de fevereiro de 2006 (ZENIT.org).- Após o assassinato de um sacerdote católico na Turquia, segundo os primeiros indícios no contexto do protesto pela publicação de charges sobre Maomé, o jornal da Santa Sé propõe um exame de consciência sobre a liberdade de expressão e liberdade à ofensa dos sentimentos religiosos.

Esta análise, afirma «L’Osservatore Romano», deveria envolver todos os meios de comunicação e todos os países, citando explicitamente o caso da Espanha, onde um espetáculo teatral ridiculariza o Papa, ameaça os católicos e incita à apostasia, ou onde um programa de televisão explicou «Como cozinhar um crucifixo».

«É lícito, em nome da liberdade de pensamento, ferir o sentimento religioso de quem pertence a uma determinada confissão? Onde começa o direito de expressão e onde começa a ofensa às convicções interiores dos demais?», pergunta Francesco M. Valiante, na edição italiana de 6-7 de fevereiro do jornal.

«Qual é a fronteira entre sátira e escárnio, entre ingênuo e ultraje, entre ironia e blasfêmia?», segue perguntando o autor como parte deste exame de consciência.

Trata-se de um debate, reconhece, entre quem «invoca o direito a caricaturar a Deus» e quem considera as charges como «um erro», «uma provocação», «uma difamação», «um ato blasfemo».

«Na questão se mesclam e, em ocasiões, confundem-se níveis diferentes: o jurídico, o cultural e o ético», constata.

«Não há dúvida de que o direito a manifestar o próprio pensamento e o direito a professar livremente uma religião formam parte a pleno título dos direitos humanos fundamentais e irrenunciáveis universalmente reconhecidos» desde há 60 anos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Ao mesmo tempo, acrescenta, «é indubitável que toda genuína expressão do primeiro destes direitos encontra na plena e integral realização do segundo um limite, por chamá-lo, de algum modo, natural».

«A tão louvada “laicidade” da sociedade moderna não deveria encontrar um dos pontos cardeais de referência precisamente na compreensão e no respeito das convicções do “outro”, ainda que sejam diferentes e antiéticas das próprias?», pergunta o autor do artigo.

«Que progresso social, que meta civil supõe ridicularizar os símbolos da fé de um crente, independentemente da religião à qual pertence?».

«Não estamos falando, como é óbvio, da crítica legítima, da polêmica argumentada, da dissensão expressa inclusive de maneira radical --declara o texto--. Nenhuma Igreja ou confissão pode pretender privilégios e imunidade».

«Mas pode, e mais, deve exigir respeito quando estão em jogo a verdade e a dignidade de uma experiência como a religiosa, que pertence à dimensão mais íntima e fundamental da pessoa humana», citando depois outras, como a familiar.

O artigo define a função pedagógica e moral da sátira com o antigo provérbio latino «castigat ridendo mores» (castigue os costumes rindo).

O texto louva a sátira, por exemplo, «quando fustigou os maus costumes e denunciou as injustiças de toda época, desmascarando a idolatria dos “poderosos”, desnudando-a desse ar sacro e artificioso que com freqüência escondia os vícios e a corrupção».

Mas isto, acrescenta, não tem nada a ver com as «baixas posturas “sacrílegas”. Quando ignora os valores e os símbolos do religioso, do que é sagrado em sentido e indefectível, perde inevitavelmente sua natureza e sua função».

«Ao ficar privada de toda finalidade crítica ou educativa, converte-se em mera agressão. Transforma-se em vulgaridade gratuita», denuncia.

E no caso das charges de Maomé ou das blasfêmias contra o crucifixo na Espanha, segundo o jornal, não fica claro «o valor artístico e cultural, ou simplesmente “satírico”».

«Fica obscura inclusive sua pretensão de ser uma expressão de liberdade ou de “laicidade”. Mas, neste caso, infelizmente, o sentido comum tem pouco a ver. Ante a vulgaridade, ante o insulto e a blasfêmia, a inteligência da razão se vê obrigada a claudicar».

O artigo conclui constatando que o sucedido na Espanha não parece «que tenha suscitado particular desdém na opinião pública. Contudo, entre os excessos do ruído mediático e o silêncio condescendente --reconhece--, fica a dignidade ofendida, a consciência ferida».

«Nessa Cruz --sinal por excelência do Amor universal-- profanada por uma repugnante mescla de miséria e obscenidade, fica agravada e cravada toda a humanidade», assegura.

sábado, fevereiro 04, 2006

GRAÇAS SEM GRAÇA

CARTA DO CANADÁ
Fernanda Leitão

A propósito da celeuma internacional em que acabou a publicação de caricaturas jocosas de Maomé por jornais diários de vários países ocidentais, ocorrem-me episódios comigo passados.
Foi num Setembro soalheiro e ameno, em Cernache do Bonjardim. Eu era uma adolescente e estava de férias em casa da minha avó Maria, que era pequenina, magra e rija, de olhos azuis e nariz arrebitado, com uma linha de queixo que não deixava margem a dúvidas quanto ao seu voluntarismo. Já não me lembro porquê, eu disse uma parvoeira qualquer que metia Deus, à hora do jantar. Minha avó pousou o talher, encarou-me de frente e disparou secamente: “Minha menina, graças a Deus, muitas; graças com Deus, nenhumas!”.
Senti-me um pequeno grão de ervilha diante de um velho e enorme carvalho. Nunca mais pude esquecer.
Há uns bons pares de anos, sentava-se a meu lado, numa escola canadiana, uma jovem mãe do Iraque, de véu e embiocada num tchador negro, o corpo todo coberto pelas vestes escuras. Era inteligente e educada. Conversávamos no intervalo. Umas carteiras adiante sentavam-se duas jovens mães egípcias, ambas em carreiras ligadas ao turismo, absolutamente ocidentalizadas no vestir, no falar e na ausência de religião. Eram alegres e bem dispostas. Na altura do Ramadão, a iraquiana, mal conseguia vencer o sono nas aulas. Eu metia-me com ela: “Levas a noite a comer e depois vens dormir para aqui... Se calhar até bebeste vinho, anda lá, confessa...”. Ela ria-se. Um dia as egípcias resolveram pegar no mote e espinafraram a iraquiana com umas graças pesadas. Ela levantou-se, numa fúria, e pôs as outras em sentido. Surpreendidas, desabafaram: “Mas a Fernanda está sempre a brincar contigo, tu não te zangas e ela é cristã, porque é que te zangas connosco se somos árabes como tu?”. A resposta surpreendente veio de chofre: “Ela tem Deus, vocês não têm”.
Em anos mais recentes, por causa de umas pessoas politicamente correctas, grande foi a zanga no prédio em que vivo porque, tendo uma senhora decorado a árvore de Natal do hall de entrada com um belo anjo no topo, foi convidada a retirá-lo... para não ofender as pessoas de outras religiões.
Os cristãos do prédio tiveram de perguntar às tais porque é que iam à parada do Natal, porque é que mandavam e recebiam cartões de boas festas, porque frequentavam os concertos de Natal e porque é que tentavam negar que o Canadá é um país de raíz cristã. Em contrapartida, na consoada desse Natal, tendo partilhado o bacalhau, o vinho e o bolo rei com amigos, em minha casa, bateram-me à porta mais de uma vez. Amigos muçulmanos vieram desejar boas festas por saberem que era um dia importante para nós. Comeram bolo rei e chá, porque eu não ia certamente servir-lhes uma bebida que eles seriam obrigados a rejeitar. As crianças ficaram extasiadas com o presépio e eu fiquei tocada pela maneira como aqueles pais lhes explicaram a importância de Jesus Cristo e de Maria, citados no Corão da sua fé. Todos ali tínhamos Deus.
O Canadá, que é um país de emigrantes e para emigrantes, tem o maior cuidado com estas questões. Nas escolas canadianas para emigrantes chegados de fresco, todos são convidados a serem educados, correctos e prestáveis, nos lugares de trabalho, nos transportes, na via pública, sendo especialmente recomendado que não abordem a religião e a política por serem questões do foro íntimo das pessoas. Posso testemunhar que assim acontece: num país de gente simpática e descontraída, todos os dias falo com desconhecidos acerca de uma coisa e outra. De política e religião, só falamos quando somos amigos e já nos conhecemos bem.
Trata-se de uma sociedade baseada no respeito mútuo.
Para ser franca, não estou surpreendida com a reacção dos islâmicos às tais caricaturas, o que não me impede de rejeitar por náusea o fundamentalismo, venha ele donde vier. Nem me deixo levar por essa treta da liberdade de expressão, que tresanda a politicamente correcto e a uma só via. O que me surpreende, e muito, é que os católicos e os cristãos em geral não reajam fortemente quando jornais, filmes, comédias teatrais e cantigas, metem a ridículo, a maior parte das vezes tocando o insulto boçal, Deus, Nossa Senhora, o Espírito Santo, os símbolos sagrados de um bilião de crentes.
Andamos todos a precisar de uma grande vergastada que nos tire da moleza e da cegueira.

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

O ASSASSINATO DE D. CARLOS

LEMBRAR UM ACTO TERRORISTA CONTRA O ESTADO PORTUGUÊS

EM EVENTO ADIADO DURANTE 98 ANOS!


João Mendes Rosa*

Cumprir-se-á, dentro de escassos dois anos, o primeiro centenário do assassinato do Rei D. Carlos e do seu filho D. Luís Filipe. Face à lucidez que a distância dos anos proporciona aos juízos e análises, expurgadas as paixões que turvam as consciências e encolerizações que aviltam os factos, é hoje indubitável que D. Carlos – «O Martirizado», no categórico cognome que lhe outorgou ad semper Ramalho Ortigão –, foi (a despeito da propaganda jacobinizante do tempo, que ainda hoje tem por aí serôdios resquícios) modelo de Homem e exemplo de Chefe de Estado: na sua personalidade convergia o cientista laborioso e probo, o pintor de merecido reconhecimento, o desportista habilíssimo, o diplomata de nomeada internacional.

No passado dia 1 de Fevereiro, passou mais um aniversário do duplo crime do Terreiro do Paço. Mas desta vez, e com um atraso de precisamente 98 anos, foi descerrada, no fatídico local, uma lápide que assinala o nefando episódio. Bem andou pois a Real Associação de Lisboa ao promover um acto com tamanha transcendência. Portugal cumpre assim o duplo dever de condenar um acto terrorista num contexto internacional de unânime reprovação dessa prática e, também, de memoriar D. Carlos – uma das mais belas expressões de humanista na Europa do seu tempo.

E a simbologia deste acto tanto mais se avulta à luz dos acontecimentos ocorridos após o Regicídio quanto se sabe que uma iniciativa congénere constituiu a derradeira bandeira do hoje injustamente esquecido Conde de Arnoso (Bernardo Pinheiro Correia de Melo), secretário particular de D. Carlos, escritor, jornalista, cronista, dramaturgo; um dos mais íntimos amigos de Eça de Queiroz (Cf. «Correspondência») e com ele membro dos «Vencidos da Vida» – plêiade que considerava de resto D. Carlos como seu «confrade suplente» (Cf. o nosso livro «Das Conferências do Casino aos Vencidos da Vida», 1998). Foi pois o Conde de Arnoso – em diligência desesperada, arrojada e solitária – quem, logo desde 1908, instou no Parlamento (ante a placidez e cobardia da generalidade dos políticos, entre eles o nefando Amaral, que ele repreendeu publicamente e lhe vaticinou 'remorsos'), para que, ao menos, se colocasse «uma lápide» no local do crime evocando o assassinato do rei e do príncipe. Mas foi tal a celeuma que este simples gesto levantou, que logo os illuminati, mormente a ala radical orquestrada a partir dos conciliábulos havidos n' O Mundo, montaram uma forte campanha de miserável jocosidade, passando a chamá-lo invariavelmente de «Conde da Lápide». Arnoso, todos os dias (no dizer de Rocha Martins) recebia «maços de cartas anónimas com ameaças; umas escritas a tinta vermelha, traziam punhais e mais desenhos cabalísticos, falavam de morte e de lhe fazerem voar o palacete pela dinamite».

Para a opinião pública mais desavisada, o talentoso autor de «Jornadas pelo Mundo», o intelectual e elevadíssimo Conde de Arnoso que Eça chamava de «delicado», morreria sendo apenas o… «Conde da Lápide». Sobreviveu apenas três anos ao seu chorado rei e amigo, passando os últimos tempos da sua vida em profundo abatimento e absolutamente desapontado com o seu próprio país.

Suponho que com este passo, a sociedade portuguesa assume, frontalmente, ante a comunidade internacional o acto terrorista de 1908. É que não se tratou de um crime fortuito, pensado por dois indivíduos anarquistas, como romanticamente ainda corre; tratou-se antes, como o expressou ao tempo a voz enfurecida e solitária de Arnoso na Câmara do Pares, de «um verdadeiro bando de assassinos a desfechar carabinas e revolveres sobre a carruagem real». Foi obra de uma terrível e autêntica organização terrorista, rigidamente hierarquizada e com aderentes dos mais variados sectores sociais: a Carbonária Portuguesa. Dos estudos que temos envidado até ao momento (Cf. o nosso livro «Pad'Zé – O Cavaleiro da Utopia», 2000) apurámos o nome de onze regicidas, mas estima-se que o seu número fosse muito superior. Era uma autêntica milícia de intervenção em que os seus elementos, postados em vários pontos do trajecto previsto para a passagem do landau, dariam morte, de uma forma ou de outra, à Família Real.

A acção militar secreta da Carbonária tem sido tratada de uma forma incompreensivelmente benévola. Uma impunidade que transitou do foro judicial para os compêndios de história! Urdindo uma intrincada trama de conspirações e atentados, muitas malfeitorias estão ainda por deslindar: umas acobertadas em suicídios duvidosos e mortes de causas muito dúbias; outras branqueadas ao tempo por uma poderosa instrumentalização das instituições.

O hediondo «Crime de Cascais» (1909) que nós próprios dissecámos no livro atrás citado é indesmentivelmente, entre outros, um dos mais formidáveis actos terroristas perpetrados em solo português, que alguns ainda agora pretendem apócrifo. É indubitável que o muito documentado fabrico de bombas (duas delas explodiram acidentalmente durante a sua confecção mas deixaram Lisboa em pânico), o tráfico de explosivos e armas, a disciplina inflexível infligida aos membros daquela organização, influiu decisivamente no curso da História de Portugal do século passado. Recordem-se as palavras de António José de Almeida: «Sem Carbonária não há revolução». Depois, o insuspeito Fialho de Almeida não hesitou em condenar a triste imagem que Portugal estava a transmitir (após 1910), ao aceitar constituir governos com manuseadores de bombas!

A «lápide» evoca a memória de um rei modelar e de um príncipe promissor vítimas do fanatismo e do fundamentalismo. Mas é também a reprovação cabal do terrorismo.



*Historiador; Universidade de Salamanca