terça-feira, novembro 28, 2006

A passeata militar

CARTA DO CANADÁ

por Fernanda Leitão
Recentemente, um grupo de militares andou a manifestar o seu descontentamento pelos vencimentos, promoções e outras razões práticas, na baixa de Lisboa. Uns fardados, outros por fardar, afirmaram que se tratava apenas de uma passeata – o que não convenceu ninguém nem contribuíu para a sua representatividade das Forças Armadas. Como em Portugal as pessoas que menos gostam de fardar-se são os militares e os padres, bastou haver naquele grupo um número não dispiciendo de fardados para a opinião pública concluir que era, de facto, demonstração hostil e de força. De penitência é que não era certamente...
A coisa passou-se perante a indiferença da população civil, o que não é dizer pouco num país que foi forjado, desde a primeira hora, por militares, frades, nobres e arraia miúda com desejo de se pôr independente de Castela-a-Falsa. Mas o tempo desgasta tudo e as coisas são o que são: depois da “descolonização exemplar”, como lhe chamou um burguês internacionalista, a população civil congelou o seu afecto pelos militares, já arrefecido pelo papel de pretorianos que desempenharam durante a ditadura salazarista. A televisão fez o resto. Quem é vai esquecer a “debandada de pé descalço”, como um historiador de esquerda chamou à tal descolonização, com militares a arrastarem a bandeira nacional, ou com ela debaixo do braço à laia de farrapo, com militares em cuecas, com militares que atiravam as armas (pagas pelo povo) pela borda fora das naus do regresso? Quem é que vai esquecer os juramentos de bandeira feitos com o punho fechado, os gangs de militares bandeados com revolucionários de vários países invadindo e ocupando as propriedades agrícolas, primeiro, e depois até prédios das grandes cidades, e até mesmo parques industriais? Quem consegue esquecer os gangs armados, comandados por um militar que não passa de um caso de polícia, responsáveis por assaltos a bancos, ataques à bomba e homicídios?
Tudo isto aconteceu sem que miliares tivessem saído à rua gritando sem medo: “não foi para isto que se fez o 25 de Abril”. Calaram-se. Ou foram para Espanha dar um espectáculo desconchavado de desorganização. Ou foram para o Brasil. Deixaram a resistência a cargo dos civis. Não exigiram, nem que fosse a murro, que justiça fosse feita e os traidores tivessem sido postos fora das fileiras. Pelo contrário, todos eles estão a receber melhores pensões do que o comum dos civis e têm todos os direitos e mais um.
Como nunca foi feita justiça, como está tudo nesta mistura nauseabunda, a população civil vira ostensivamente as costas aos militares. Ignora-os. Sabe, vagamente, que neste tempo de guerras um pouco por toda a parte, com as quais Portugal tem pouco ou nada a ver, os soldados vão de boa vontade para essas guerras ganhar a vida desse modo. É tudo. E tudo embrulhado no politicamente correcto da estafada civilização ocidental.
Desfazer esta mistura, este mal entendido, devia ser a causa primeira dos militares. Andar a fazer passeatas pela baixa, em desobediência clara ao governo civil e às chefias do estado maior das Forças Armadas, é mais uma prova de que têm razão os civis que, desde 1975, dizem que não foi para isto que se fez o 25 de Abril.

Anotações às palavras de Manuel Alegre

As palavras de apresentação do livro D. Duarte e a democracia – uma biografia portuguesa de Mendo Castro Henriques, por Manuel Alegre, estão desde hoje editadas em Unica Semper Avis com algumas anotações e referências de José Manuel Quintas. A importância das palavras proferidas por Manuel Alegre, justifica que sejam tomadas como ponto de partida para leituras e reflexões aprofundadas sobre alguns temas:

- a herança dos «Vencidos da Vida» e o Integralismo Lusitano;

- as razões e o conteúdo das críticas ao parlamentarismo durante a Monarquia constitucional;

- a recusa do Estado Novo por parte do Integralismo Lusitano, em contraste com a adesão do grupo da Acção Realista, dirigido por Alfredo Pimenta;

- a Monarquia e a Democracia, hoje, à luz do neo-integralismo.

A universidade entre Bolonha e o MIT

por José Medeiros Ferreira (*)



Com o fim da última legislatura, em Março de 2005, regressei plenamente à vida universitária. Não que a tivesse abandonado por completo durante os dez anos em que fui deputado nesta fase política. A título gracioso (uma preciosidade pré-capitalista amparada na mais moderna legislação...) mantive, durante vários anos, cursos na licenciatura de Ciência Política e Relações Internacionais e no mestrado de História, na Universidade Nova de Lisboa, e ainda orientei seminários numa post-graduação na Universidade dos Açores. Porém, desde então pude aperceber-me melhor das transformações que atravessam estas instituições tão estruturantes na vida das sociedades como aquelas outras que todos referem com respeito.

A minha primeira impressão neste regresso é a de estar a assistir a um momento de perplexidade nas universidades portuguesas. E inevitavelmente comparo com a firmeza com que a Universidade de Genebra se adaptou às consequências do Maio de 1968, que sacudiu o ensino superior europeu de baixo para cima, enquanto Bolonha pretende orientá-lo de cima para baixo...

Aliás, até se poderia periodizar a história das universidades europeias entre Maio de 1968 e o actual Processo de Bolonha. O que pode haver de útil em Bolonha terá de ser encontrado do lado da qualidade, da comparação dos estudos feitos, da mobilidade permitida e facilitada de estudantes... e de professores.

Ora, a burocracia está a tomar conta do processo. A uniformização, atentatória da mais elementar autonomia universitária, apossou-se da teoria dos três ciclos integrados, sendo que o primeiro se assemelha de mais a um propedêutico prolongado, e o segundo, que corresponde ao mestrado, pouco espaço e tempo disponibiliza para a investigação e a dissertação.

A tutoria dos docentes tornou-se a grande aquisição deste modelo e apenas com um senão: os cursos em vez de diminuírem o número de alunos a serem "tutelados" aumentam- -no em desproporção. A tutoria de Bolonha requer mais docentes universitários, não menos. Temo que, em Portugal, Bolonha possa ser antes o pretexto para despedir.

A passagem das licenciaturas de quatro para três anos, nos cursos de ciências sociais, está a empurrar algumas cadeiras para fora dos curricula. Por exemplo, em História, essa compressão está de novo a reduzir o ensino e a investigação em História Contemporânea, uma das áreas mais procuradas nos últimos 20 anos pelos estudantes. Percebe-se, antes era inexistente... Toda a esperança de uma universidade portuguesa activa na investigação e num ensino renovado passa praticamente para o último ciclo, o terceiro, aquele que dará origem ao grau de doutor, caso os docentes não desfaleçam entretanto na via-sacra de tanta estação.

Este é pelo menos o resultado mais à vista desta primeira subordinação apressada das universidades portuguesas ao comando indicativo das recomendações europeias inseridas no Processo de Bolonha e para cuja execução positiva e indutora de qualidade seriam precisos mais recursos e não cortes simultâneos no orçamento. Querer adaptar o ensino superior às recomendações de Bolonha num momento de cortes financeiros é um desafio lançado às universidade portuguesas que assim vão passar provavelmente por um mau momento.

É possível que, ao nível das faculdades e dos institutos técnicos e politécnicos, os acordos passados com instituições alheadas de regras de uniformização e de compatibilização como o MIT [Massachusetts Institute of Technology] venham a induzir uma inovação científica pioneira nos anais de instituições similares (e bem precisados estamos de que isso aconteça), mas dá-me a impressão que poderá haver um hiato entre o que se procura em Bolonha e o que se procura no MIT. No entanto, declaro-me desde já partidário da diversidade das influências externas, de onde muita inovação será de esperar nos próximos tempos. Mas sem se estabelecer qualquer relação bastarda de colonizado e de colonizador.

As universidades portuguesas estão assim sob fogo cruzado. A indução do Processo de Bolonha, numa versão uniforme e burocrata, e a ciência aplicada que há-de escorrer dos acordos com o MIT para as nossas oficinas superiores colocam o nosso ensino numa forte dependência exterior estratégico-científica.

Acresce que com o corte das verbas orçamentais encontram-se as universidades abatidas na sua autonomia e uniformidade.

O que se espera então da avaliação ao estado de saúde do doente à saída do bloco operatório, onde lhe enxertaram uns órgãos de Bolonha e outros do MIT?


* Professor universitário

jmedeirosf@clix.pt


in Diário de Notícias, 28 de Novembro de 2006.

segunda-feira, novembro 27, 2006

O gesto criador

por Teresa Maria Martins de Carvalho

Provavelmente, o registo do gesto criador mais antigo que se conhece, serão essas palmas das mãos impressas, de propósito, na argila húmida da parede, na caverna pré-histórica de Pech-Merle, em França. Além do espanto e do prazer, bem evidentes na descoberta do poder da mão, movendo-se na ductibilidade da matéria, macia e manejável, podemos ver, também já presentes, outros elementos que identificam o gesto criador como tal. Em primeiro lugar a liberdade, projecto seguro que possibilita ao autor do gesto a moldagem e a gravação, que lhe prepara a apropriação do símbolo e da transfiguração, que lhe vai provocar o sair de si dono de si. Em segundo lugar, o reconhecimento súbito de algo que existe e se desenvolve a partir do espaço redesenhado, algo ainda indefinível mas a que permanece ligado como a um balbuceio de religião. Qualquer criança, no Jardim Infantil, experimenta este gozo imenso e irreprimível de pintar com os dedos. Qualquer adolescente dificilmente resiste à superfície branca e vazia da parede, apelo premente a que nela escreva os seus “tags” e desenhe os seus “graffitti”, ingénua, precária e imortal afirmação de si próprio. As circunstâncias também fazem surgir o artista…
É óbvio que, antes e depois das mãos impressas, terão existido outros gestos criadores de que não há registo mas que facilmente se adivinham, os enfeites, os colares, os brincos, a pintura do corpo, o canto, a dança. Se o ritmo, inerente a qualquer jogo, vaivém encantatório, abolidor do tempo e efabulador de eternidade, tem presença forte e fundadora no canto e na dança, não é muito visível nos desenhos pré-históricos. Talvez aqui o ritmo lúdico se apresente na insistência do gesto criador, que sempre acaba e sempre recomeça. Não admira assim que seja no âmbito do primeiro gesto criador, sinal inequívoco da presença do humano, que se venha inserir o desejo de contacto com o sobrenatural e se cumpra o voto à divindade, voto de esconjuro ou de prece.
Nas pinturas rupestres nota-se, com surpresa, o aproveitamento astucioso das fractuosidades e saliências de pedra para dar volume às figurações dos animais. Um olhar que vê o que lá não está mas que lá está potencialmente e que, por isso, será desenhado. É o mesmo olhar que vê castelos nas nuvens e serenas paisagens nas manchas de parede. Ouçamos a este respeito Leonardo da Vinci: “…assim o nosso Botticelli dizia que (o estudo da paisagem) era um estudo vão, porque era suficiente passar sobre uma parede com uma esponja embebida em várias cores para que ela lá deixe manchas onde se pode ver uma bela paisagem. É bem verdade que se pode ver numa mancha diferentes composições de coisas que lá se quiserem procurar, cabeças humanas, diversos animais, batalhas, escolhos, mares, nuvens, bosques, etc.”.
Assim se compreende que para Leonardo a pintura seja “coisa mental”. Tudo o que o artista conhece visualmente é conservado na sua mente, de modo natural, espontâneo, por vezes quase doloroso de tão deslumbrado. Provido da visão e do tacto, do olhar e da mão, conseguirá depois desdobrar esse outro mundo que em si nasce. Estas duas faculdades juntas é que fazem a especificidade do artista, o poder raro de expressar o que a natureza e a vida lhe imprimem na sensibilidade e na imaginação. Não é só ser capaz de ver mas também de inscrever, descrever, rescrever…
Esta transcrição facilita aos outros homens o acesso a essa visão porque, no fundo, todos possuem capacidade para a receber e entender. Daí o apreço permanente e universal pela obra de arte, que transforma todos em visionários. Mas apesar desta primazia singular – ele que vê antes de nós – e apesar deste serviço inegável, o artista representa apenas, na comunidade, o “habilidoso”. Nunca será um “conductor” social. Uma vez completada a obra de arte, ela pertence a toda a gente porque todos nela se reconhecem e o artista é como que despojado da sua obra. Terá de recomeçar para sobreviver.
Parece injusta esta domesticação do artista pela comunidade, onde não será nunca um agente mágico, recriador de mundos, com poder e domínio sobre aqueles que deslumbra e extasia com as suas habilidades. Não. Remetido constantemente à sua condição humana terá assim de prover à sua subsistência, como qualquer outro homem. Quando necessitar de tempo para o exercício do seu mister, alguém terá de o sustentar e a própria comunidade o fará, se isso lhe for útil. De outro modo tornar-se-á comerciante de si próprio. Pedinte. O que faz não é imediatamente útil e, sendo supérfluo, está sujeito às boas disposições e boas finanças dos outros, seus admiradores. O artista, não é por si só poderoso e influente com estatuto social elevado, pelo menos ao nível da sua importância na cultura. Criador de espaços de liberdade será sempre inconveniente para todo o poder. Ou subserviente. Compreende-se assim a permanente penúria de dinheiro em que vive, dependente de quem lhe quiser pagar. Comprar-lhe ou comprá-lo. “Avida dollars”. Este anagrama das letras do nome de Salvador Dali, inventado por André Breton, foi adoptado pelo pintor, num momento de lucidez e troça de si próprio, e torna patente esta situação. O artista é um trabalhador como outro qualquer, afinal. Ser visionário, habitante de dois mundos, não faz dele, automaticamente, um ser especial. As dificuldades sociais e familiares do artista são geralmente rodeadas de inquietação e de irritação, obrigando-o a descer do seu etéreo mundo para resolver fúteis ou graves questões domésticas para as quais não tem nem saber nem perspicácia, sofrendo desgaste inútil na sua, por vezes esquiva, inspiração.
A aprendizagem firma-se na “mimesis”, na imitação. Foi ela, aliás, que tornou possível – que torna possível! – a humanização, a par da linguagem, da agricultura, da tecnologia. O gesto criador é também, por isso, até certo ponto, copiável e recriável e na sucessão temporal dos artistas, copiando-se uns aos outros, aprendendo uns dos outros o modo de olhar e de fazer, mas ultrapassando as maneiras e subtilmente inovando na invenção de estilos próprios, eles transformam-se assim também em guardadores de segredos e de truques, de proporções e receitas, que irão transmitir o artesão ao aprendiz, o mestre ao discípulo. E estas duplas milenárias, atravessarão os séculos, vagueando de comunidade em comunidade, chamadas de terra em terra, oferecendo os seus préstimos de país para país, ou assentando, quando famosas, de “atelier” em “atelier” deixando sempre atrás de si rastos reconhecíveis. Muitos destes artistas são anónimos, como por exemplo o Mestre do Sardoal, que só tem por nome o nome da terra onde trabalhou. Outros, no favor de tempos mais propícios à individualização pessoal, marcaram com a sua forte personalidade espaço e tempo definidos, marcos na memória, que suscitam a admiração e respeito das gerações seguintes, nomes que se decoram e se veneram, obras que nos subjugam e contentam. Esta vagabundagem do artista é confirmada com muita frequência nas voltas da História. Quando D. Afonso Henriques pediu a S. Bernardo alguns monges para o arroteio das terras portuguesas, recentemente conquistadas aos mouros e vítimas de ermamento e destruição, os cistercienses, que vieram, construíram em Alcobaça um mosteiro em tudo idêntico ao de Claraval, implante desajustado, que viu à sua volta continuar a construir-se o românico. Só a partir de D. Afonso III, rei que de França veio, se enraizou o gótico, em 1250. No séc. XVI, todo o vale do Mondego foi enxameado pela estatuária feita ao jeito de João de Ruão, mestre em Coimbra da pedra lioz. A passagem em Portugal do pintor flamengo Jan Van Eyck, chamado por D. Afonso V, é decisiva para a execução, por Nuno Gonçalves, dos Painéis de S. Vicente. A estadia de Nazoni e Ludovice no séc. XVIII é fácil e agradavelmente assinalável… São bem leonardescos os Anjos que assistem ao Baptismo de Jesus, obra oriunda do atelier de Verrochio, como são da mão de Van Dyck muito do que Rubens pintou… Depois há saltos de séculos, misteriosos e inexplicáveis como o sorriso dos efebos na Grécia do séc. VII, que desaparece no helenismo mas resistiu nos Budas destruídos do Afeganistão, reaparece no Anjo da Anunciação da Catedral de Reims e imortaliza-se em duas telas de Leonardo da Vinci. Os nomes famosos de Zeuxis e Fídias sobrevoam a multidão dos geniais escravos gregos que, anonimamente, copiaram e recopiaram toda a arte helénica. A arte bizantina teve mais sorte. Depois de séculos de mestres e discípulos, de artesãos e aprendizes repetindo e melhorando modelos, numa euforia exaltante de cores e brilho, epifania de eternidade, só comparável às criações da arte egípcia, arte tumular que é resplendor e milagre, um nome se inscreve finalmente, no séc. XV, Andrei Rublov, que ilumina para sempre todo o conjunto greco-russo-bizantino…
No séc. XIV, na Itália, os artistas já são gente individualizada, ganhando fama própria, e o que fazem vai ao encontro de desejo da multidão, essa mesma que arrebata a Madonna Ruscelai do “atelier” de Cimabue assim que este finda a obra, e a leva em procissão até à Igreja para onde se destinava. Igual multidão entusiasta invadia a Igreja del Carmine, em Florença, para aplaudir Masaccio, esse “avatar” de Giotto, precursor genial como ele, e que, no alto do andaime pintava os frescos da Capela Brancacci, esses frescos que, depois da morte prematura do artista, permaneceriam como escola para o olhar dos futuros pintores renascentistas que os iam admirar. O gesto criador torna-se científico. “Che bella è la perspectiva!” exclamava Ucello. É já vincadamente pessoal e encarna agora o estilo próprio de cada artista. No entanto, não deixamos por isso de encadear todos os artistas uns nos outros, delimitando épocas, caracterizando escolas, deslindando influências, como se todos fossem comunicantes, diferentes mas iguais, pertencentes ao mesmo destino, detentores do mesmo mistério. Valerá ainda perguntar em que se reconhecem? O gesto criador é semelhante em todos eles e o que fazem tanto atrai os poderosos e mecenas como o povo miúdo. Se voltarmos à pré-história, vemos que ao lado das fantásticas visões dos animais, gravadas e pintadas nas paredes das cavernas, com intenções nitidamente religiosas ou mágicas, e portanto com utilidade manifesta, aparece-nos humildemente a arte de olaria onde o gesto criador que afeiçoa os vasos, neles acrescenta incisões geométricas, gratuitamente… Para os tornar mais valiosos, mais belos? A irrupção da beleza neste contexto primitivo não deixa de nos espantar. Todos julgamos saber o que é a beleza. Nem é preciso explicar. Se é que ela se explica… Prisioneira da emoção vê-se acomodada no reino da intuição, e no mais profundo sentido de viver, reino que o artista percorre, escolhido e predestinado para ouvir o canto das esferas estelares, sentir nos dedos as regras de desconhecida harmonia, exigente e branca, que lhe habita e assombra o corpo e a alma. Mas porquê aplicá-la ou descobri-la em objectos de uso comum? Que sentido faz? Parece-nos inexplicável esta identificação primordial, esta justaposição do artista e do artesão, habituados como estamos a separações qualitativas, porventura incorrectas.
A “poesis”, a criação, e a “teknê”, a realização dessa criação, não têm que andar separadas? O gesto criador é, ao mesmo tempo, “poesis” e “teknê”, e o domínio da beleza é o seu jardim privado. Houve alguns séculos de sereno compromisso em que os artistas se tornaram obreiros principais das maravilhas que os poderosos encomendavam para os seus palácios, as instituições religiosas ou cívicas para as suas Igrejas e devoções. O cânon estético era praticamente o mesmo, promovido pelo génio dos artistas do Renascimento que tinham ido recuperar, à Antiguidade, a medida do corpo humano. Mas não era só o consenso geral sobre a obrigatoriedade da figuração humana condigna e correcta, sobre a transcrição de paisagens naturais, ou os esforços prodigiosos para obter os melhores efeitos e forçar o resplandecer da beleza inatingível, a atingir e atingida. Os motivos eram sobretudo religiosos, sobrepujando-se aos retratos, às paisagens, às cenas domésticas ou aos mitos pagãos. O exagero deste compromisso desaguaria num formalismo e numa retórica exuberantes que inundaram literalmente a civilização ocidental. Nada nem ninguém ficou imune. Contudo, este formalismo dominador acabaria por perder completamente de vista o desígnio espiritual e religioso para o qual as obras tinham sido encomendadas. O delírio da pura forma, o predomínio do enfeite e do arre bicado, leve e gentil, aparentemente inofensivo, levaram o gesto criador a basear-se na perícia, no artificialismo do decorativo e do académico, numa ausência quase total da força simbólica do religioso ou do assombro pela presença do espiritual. Era velado pela emoção estética, epidérmica e sensual e, no fim e ao cabo, muito pouco embebido no mistério cristão.
O romantismo acentuou esta saturação do humano e do tema religioso, que herdara do barroco, fazendo renascer os ideais religiosos medievais, reproduzidos fielmente em obras de iluminada pieguice. E de repente aconteceu, com estrondo e violência, aquilo a que Ortega y Gasset chamou, num estudo de 1925, a “deshumanização da arte”. De modo abrupto, destruidor e provocatório, um punhado de artistas impôs aos olhos atónitos de um público estremunhado, um gesto criador “intranscendente”, esvaziado de todo o patético humano, liberto da linhagem dos mestres da tradição, e fazendo-o procurar directamente na raiz do pensamento a génese da cor, do movimento e do volume e aplicando à visão da realidade uma grelha de desconstrução que a desarticula, a escrutina e a desfaz em pedaços ou a explica em minudências matemáticas ou em linhas de força. Este processo é patente em Vieira da Silva, Pomar ou José Guimarães.
O impacto provocado pela intromissão destes artistas transgressores que buscam algo de verdadeiro, de fundo, de sólido para além da convenção, foi muito grande, tão grande que ainda dura há quase cem anos porque, como também viu Ortega na altura, implica a “impossibilidade de voltar atrás”. Picasso é o protótipo desta gente. Ele é o invasor vertical [3] espantosamente livre, iniciando uma visão primigénia da arte sem o peso de raízes condicionantes. "Não mais se celebra o homem vivo. “ A glória de Deus é o homem vivo, dizia, no séc. III, Santo Irineu. Assim, também se negará a glória festiva de Deus e tudo o que se erguer contra o homem será blasfémia.
A conquista da velocidade imprimiu ao mundo ocidental um ritmo de corrida, de fuga, de permanente precipitação para a frente, de contínua mudança, anseio devorador de novidades, com a colaboração eficiente das técnicas de “marketing”, imperiosa máquina que nos domina o comportamento, fornecendo-nos constantemente o alimento e o apetite. Mas, na refrega do atropelamento de escolas e de estilos, ninguém fica ferido ou sequer magoado, por maior o escândalo e a sempre mais sugestiva provocação. Nem mesmo será banido o sinistro Damian Hirst, com os seus cadáveres em formol. A sociedade de consumo, que também somos, encarrega-se de neutralizar estes pretensos gestos blasfemos, transformando-os rapidamente em mercadoria vendável, com cotação no mercado, na moda e na vaidade social. E dando a ganhar milhares de contos a estes vândalos vencedores.
Dir-se-ia que é a sociedade que se purifica a si mesma, neutralizando ataques e blasfémias, inserindo-os no seu simples e contínuo caminhar, anestesiando-se na pressa do sempre para a frente. “Homo viator”. Quem foi que disse que “nós não somos deste mundo” (Ruy Cinatti)? Condição por excelência do homem, portanto, este andamento, esta sociedade migrante, transeunte. “Opportet transire”, adverte Mestre Eckart. Não morre a esperança, portanto.
Este acontecimento, apresentado com frieza e vigor, entrou em aceleração, apanhado pela força do tempo e multiplicou-se, encarnando no cubismo, no dada, no futurismo, no surrealismo, na arte abstracta, na “pop art” que faz agora cinquenta anos e em que o cinismo de Andy Warhol entronizou para a eternidade a lata de sopa da Campbell. “Pop art”, e porque não? Ela pertence à visão correcta da paisagem a que pertencemos, em que nos encontramos envolvidos em objectos e electrodomésticos. Já não vivemos na natureza que hoje é guardada em parques naturais que se visitam em excursões pedagógicas e higiénicas. Vivemos quase todos encaixados na paisagem urbana, em cidades que apagaram as estrelas.
Neste correr esforçado, há pouco tempo para viver que se torna curto, concentrado, juvenil. Já tem sido frequentemente apontada e até estudada a actual infantilização da sociedade, a que assistimos com ansiedade e receio. As inscrições infantis de Klee ou de Miró, as construções aéreas e móveis de Calder seriam já os sinais precursores desta cidade cujo rei é uma criança. O que são os “happennings” e as instalações senão brincadeiras efémeras, passageiras? “I want to die young”, canta o vocalista da banda. E as divertidas máquinas de Tanguely, denúncia vigorosa do mercantilismo em arte ou a chalaça embrulhadora de Christo, que tenta salvar o olhar do excesso de imagens, multiplicadas pela fotografia, pelo cinema, pelos media, despertam um riso adolescente, nervoso e irresponsável, no gozo do monstruoso ou do grotesco (Bacon, Botero e Paula Rego), arrepiado com o gesto do arremesso de Pollock ou de Mathieu, que é a negação do projecto, instituída em obra de arte.
É curioso tentar seguir a trajectória do traço, do desenho contornado, com a cor a ele submetida. Nasce da técnica exigida pelo fresco e pela iluminura mas, mal se instala na Itália a pintura a óleo, ele desparece. E das mãos prodigiosas de Ticiano, de Velásquez, de Turner, dos impressionistas com apenas alguns toques de pincel, se abre e se espraia a criação do espaço evanescente e do ar circulante. Mas a invenção da gravura instalam-no na ilustração onde terá vida longa, sobretudo na Arte Nova com Beardsley, Mucha, Klimt. Depois Matisse, Léger, Almada Negreiros. Finalmente o cartaz, a banda desenhada, Tintim. Sorte para as criancinhas, dos 7 aos 77… “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade e correr atrás do vento” adverte Quélec. “In extremis, coligam-se, em deslumbrante colaboração de refúgio, o teatro, a dança, a música, o vídeo, o cinema, produzindo espectáculos – ou conteúdos - para uma sociedade em que tudo se tornou espectáculo que é, por definição, temporário e frágil, circense e passageiro. Testemunhas urgentes do fenómeno social, encobertas pelo próprio excesso das suas recusas e propostas, teme-se que o fragor das criações destes artistas transgressores os não deixe ouvir ou entender. Era bom que os tomássemos a sério por uma vez e escutássemos a imensa dor que os move, num enredo de perplexidade e de morte. Mas de que serve o conselho? A velocidade é tal que neste momento talvez tudo o que se disse atrás já tenha excedido o prazo de validade. Peço desculpa.


BIBLIOGRAFIA
CARVALHO, Teresa Martins de - O gesto criador – Esboço para um estudo de criação artística (dactilografado) Faculdade de Letras - Departamento de Filosofia, Lisboa, 1983
FORMOSINHO, Sebastião J. e BRANCO, J. Oliveira – O brotar da criação. Universidade Católica Editora, Lisboa, Abril 1999
FREITAS, Lima de – Voz Visível . Edição do Autor, Lisboa 1971
GASSET, José Ortega y – La deshumanización del arte Ed. Revista de Ocidente, Madrid, 5ª ed., 1958
_________
[1] Leonardo da Vinci in Traité de peinture, pág. 94
[2] Ortega y Gasset in La Deshumanización del arte, pág. 53
[3] Lima de Freitas in Voz Visível, pág. 93

O motor da república

por Nuno Pombo

Para promover, penso eu, uma aproximação entre as pessoas e as instituições que as governam, representam ou simplesmente maçam, foi entendido mostrar ao pagode os bólides em que se passeiam ou fizeram transportar as excelências presidenciais. Uma espécie vanguardista de museu dos coches, aquele a que presidência da república tem direito.

Não é esta iniciativa, por si só, digna de qualquer comentário, não fora ter a anunciá-la um cartaz, plasticamente conseguido, no qual se vê, lustroso, imponente, um Rolls Royce encimado pela expressão "motor da república". Habituado que estou a pensar que esta república a que nos castigaram não é movida por causa (que não coisa) alguma, achei curiosa, por paradoxal, a chalaça publicitária.

Depois da conseguida perplexidade, dei comigo a concordar com a justeza da metáfora… Aquele Rolls Royce é, na verdade, adereço apetitoso para quem ambiciona cargos de chefia no funcionalismo público. Acresce que o dito Rolls presidencial é, também, o paradigma da república que temos: não é genuinamente português; tem um preço exorbitante; é pesadíssimo; se se avaria não se sabe bem quem o pode arranjar e qual o custo da reparação; o seu dono não o guia (tem motorista, mecânico, polidor, garagista, e outros "assessores"); gasta tanto combustível como um tanque de guerra; está insonorizado para conforto dos viajantes, ainda que seja ruidoso para todos os que se cruzam com ele (paciência!); polui quase tanto como uma fábrica de cimento; teoricamente todos podem ser donos de um, mas todos sabemos que não é bem assim; é lento, muito lento, e, convenhamos, não foi feito para levar ninguém muito longe...

Onde está esse Rolls? Num museu! Ora aí está uma decisão acertada!


In Diário Digital , em 27 de Novembro de 2006

domingo, novembro 26, 2006

Dom Duarte de Bragança e Manuel Alegre



No passado dia 22 de Novembro, Manuel Alegre apresentou em Lisboa o livro Dom Duarte e a Democracia de Mendo Castro Henriques.

Unica Semper Avis publica hoje a intervenção de Manuel Alegre, bem como uma resenha de imprensa acerca do evento.


http://www.lusitana.org/causa_dd_2006_e_d.htm

sábado, novembro 18, 2006

Henrique Barrilaro Ruas - Exposição na BNL

Até ao dia 25 de Novembro, ainda poderá ser visitada a exposição.

Dom Duarte e a Democracia




O mais recente livro de Mendo Castro Henriques - Dom Duarte e a Democracia - será apresentado em Lisboa por MANUEL ALEGRE na próxima Quarta-feira, 22 de Novembro, na Sala de Teatro Gymnasium (Centro Comercial Espaço Chiado), pelas 18h30.

No Porto, o livro será apresentado por PAULO TEIXEIRA PINTO, na Casa da Música - Corredor Nascente, Av. da Boavista, 604-610, no dia 23 de Novembro, pelas 18h30.

sexta-feira, novembro 03, 2006

Cinco perguntas populares...

por Ruben de Carvalho

Jornalista

rubencarvalho@mail.telepac.pt

O projecto anunciado para o velho museu de "arte popular" em Belém levanta - até pelo que não foi esclarecido - diversas interrogações. Aqui se deixam cinco.

Primeiro. Associar num equipamento museológico a língua portuguesa e os descobrimentos faz sentido? E, se faz, a partir de que pressupostos culturais, científicos e ideológicos? Tata-se de uma associação virtuosa ou, pelo contrário, acabará a fazer prevalecer - com incontornável significado cultural e político - a visão de um dos aspectos sobre o outro? Naturalmente que a divulgação da língua portuguesa pelo mundo está intimamente associada aos descobrimentos, mas os descobrimentos não têm de ser abordados para além da questão da língua e a língua não tem de ser abordada para além dos descobrimentos?

Segundo. O tratamento museológico de um fenómeno linguístico tem hoje exigências (simultaneamente permitidas e exigidas pela evolução tecnológica) de que, segundo parece, as experiências virtuais de São Paulo são um estimulante exemplo. O edifício de Belém adequa-se minimamente a estas exigências? Mais importante: a musealização dos descobrimentos tem características, exigências e possibilidades completamente diferentes: é compatível, será enriquecedora e coerente a junção das duas?

Terceiro. O acervo existente (ainda?...) do antigo Museu de Arte Popular é contraditório no seu valor e significado, mas, para além exactamente da globalidade, de que já se falará, contém peças que, em quantidade e qualidade, são hoje únicas. A decisão tomada parece prever a sua disseminação por diversas instituições, algumas que poderão com coerência e rigor acolhê-las (caso do Museu de Etnologia). Mas não se previu, segundo parece, nenhuma solução para manter criticamente coerente um acervo que o é? Dispersá--lo peça a peça, à luz não se sabe bem de que critérios, não é evidentemente a liquidação de um património conceptual?

Quarto. O próprio museu era, como tem sido sublinhado, na sua globalidade - concepção, colecção, edifício - um elemento demonstrativo de uma visão cultural, ideológica e política do povo e da sua arte, própria do salazarismo. Que fica dessa relevante memória?

Quinta e insidiosa pergunta: depois da zona oriental e da Expo de Guterres, o Governo PS resolve acolher-se novamente aos convencionais faustos do poder da zona de Belém?...