quinta-feira, fevereiro 15, 2007

As duas culturas do nosso tempo

RESCALDO DA CAMPANHA:
as duas culturas do nosso tempo

Na raiz da polémica entre o sim e o não esteve uma matricial divergência de compreensões acerca do homem e da vida.

Pelo PROF. DOUTOR MÁRIO PINTO

Ao contrário do consenso que foi reivindicado pela campanha do sim, penso que a sociedade portuguesa se encontra muito dividida, como aliás se verificou nos dois referendos e no Acórdão Constitucional mais recente. Se algum consenso há, é que o aborto é sempre um mal. Nos debates públicos também foi consensual que ninguém deseja uma punição da mulher que possa ser cruel; mas não foi consensual a despenalização, pura e simples, do aborto. Isso não foi.

A meu ver, a questão foi demagogicamente distorcida, demonstrando-se mais uma vez as fragilidades do instituto do referendo, o que não justifica a negação da sua legitimidade e vantagens. Os adeptos do sim ao aborto livre conseguiram que o argumentário da campanha se centrasse nas desgraças da mulher que aborta, causadas pela clandestinidade e acrescentadas pela penalização legal.

Assim, em vez de se discutir o crime de aborto (isto é, o seu desvalor) e, em consequência dele, a melhor adequação da sua prevenção e repressão (e há mil coisas que se podem fazer para apoiar e tratar a mulher grávida sem por isso descriminalizar o aborto), a argumentação centrou-se na crítica abstracta à instauração de processo judicial e à eventual aplicação de pena à mulher que aborta voluntariamente, afirmando uma sempre injusta vitimização da autora do crime. Ora, não se pode afirmar que a mulher que aborta o faz sempre por justificadas razões; e isso prova-se até com os casos (excepcionais) de mães que maltratam e até matam os filhos, depois de nascidos.

Desta forma, por mérito de uma hábil centração psicológica dos debates nos sofrimentos da mãe, dignos de compaixão, a morte violenta do filho inocente, provocada por decisão arbitrária e insindicável da mãe, por métodos por vezes bárbaros, ficou na sombra e no olvido. E a prova disto é que foi tabu falar e, mais ainda, descrever ou mostrar imagens do aborto. Como explicar?

Penso que na raiz da enorme polémica entre o sim e o não esteve uma matricial divergência de pré-compreensões acerca do homem, da vida e do mundo. É uma velha clivagem; mas porque, na era actual da civilização ocidental, ela se tem manifestado com maior evidência a propósito das questões da vida, já foi reconduzida à alternativa entre "uma cultura de vida e uma cultura de morte". Sem dúvida, esta expressão é caricatural e, por isso mesmo, sugestiva. Por mim, prefiro afirmar que, na sua raiz mais profunda, a alternativa das opções culturais é entre: a racionalidade e suas consequências ainda que incómodas; ou a comodidade e suas consequências ainda que irracionais. Ora, a tendência mediática e ideológica do nosso tempo progride em direcção à preferência da comodidade, ainda que irracional.

"A razão débil"; "a razão indolente"; "a razão cómoda", ou comodista; estas e outras expressões começam hoje a circular pelos escritos dos filósofos e dos cientistas sociais, sempre para apontar o mesmo fenómeno detectado como característica dominante da cultura dos nossos dias: a desfalecência ou descrença da razão, e desde logo da razão ética. Não é por acaso, e apenas por causa da "guerra santa", que o Papa Ratzinger abriu, ou reabriu, a frente decisiva de defesa da razão.

A indiferença pela morte do filho gerado chocou-me nos defensores do sim; que, pelo contrário, revelaram uma sensibilidade máxima, exclusiva e obsessiva, pelos incómodos ou sofrimentos da mãe que aborta, e sobretudo pela alegada violência da perda da sua privacidade quando levada a juízo. Num tempo em que por mil razões se tem comprimido o direito de privacidade, implícita estava pois a ideia de que a morte violenta do filho abortado, além de ser legítima, ainda por cima é assunto privado, onde o direito não deve entrar. Postulou-se que o filho, quando condenado à morte pela mãe, não pode ter nem defensor nem testemunha. Tal indiferença assumiu a sua formulação mais extrema na tese em que a vida do filho, para ser digna de protecção, deve ser desejada. Não é possível ir mais longe na desvalorização da vida humana. O que aliás foi ilustrado, com a ironia do insulto, aos filhos indesejados, de filhos do Código Penal - fórmula esta pós-modernista de muito mau gosto.

Com esta dessacralização da vida, com esta violação da vida, abre-se uma porta que não é possível fechar para outras formas de violação, que começam a alinhar-se. Perde-se o único critério substantivo, que é o da inviolabilidade. Restarão apenas arbitrários e ocasionais limites formais - como o das dez semanas.

Quem resiste? Sobretudo os crentes, ouvi dizer. Os adeptos do sim disseram muitas vezes que na questão do aborto os católicos não deviam pretender impor uma moral confessional num Estado laico. São portanto os não crentes a identificar a fé religiosa como inspiração da cultura de defesa intransigente da vida. Com essa alegação, pretendem ilegalizar a cidadania dessa cultura. Porém, sem razão. Foram os católicos, inclusive os bispos, a dizer que a defesa da vida vale por si mesma, no plano da laicidade, com plena autonomia racional cultural; e que é neste plano que os católicos intervêm.

A propósito, recordo que, numa entrevista que ficou célebre, o famoso filósofo e jurista italiano Norberto Bobbio, laico e liberal progressista, expoente da luta pelos direitos humanos, pela democracia e pela paz, afirmou que "o direito do nascituro pode ser respeitado somente deixando-o nascer", acrescentando: "surpreendo-me que os laicos deixem aos crentes a honra de afirmar que não se deve matar".

Não penso que os crentes desejem este monopólio; mas não desdenham a honra.

domingo, fevereiro 04, 2007

O referendo: que tipo de ética?

Eticamente falando, a proposta de alteração à actual lei sobre o aborto é muito dificilmente aceitável, por vários motivos. Desta vez, apresento três:
i) a própria pergunta à qual os portugueses vão responder votando sim ou não é (intencionalmente?) não só tendenciosa, mas também enganosa;
ii) não há qualquer critério, científico ou moral, que possa justificar a total liberdade de escolha até às dez semanas sem que não o possa ser também depois;
iii) numa perspectiva de ética social, é um aproveitamento da parte do Estado para supostamente “resolver”, a curto prazo, uma situação socialmente inadmissível mas com um preço significativamente elevado a pagar a médio-longo prazo.

i) A Pergunta

Primeiro: a pergunta é tendenciosa. De facto, interessa pensar porque é que, no primeiro referendo sobre esta matéria, se deu tanta importância e houve tanto debate público sobre a formulação da questão e, desta vez, quem a propôs não considerou que fosse uma preocupação relevante pesar cada palavra da pergunta que se vai fazer aos portugueses. As palavras que usamos na nossa linguagem são, não só veículos de informação, mas também expressão de sentimentos e opiniões muitas vezes implícitos. Quer dizer: a linguagem não é neutra. Nem pretende ser.

Concretamente, no que respeita ao nosso assunto, a expressão “interrupção voluntária da gravidez”, quer-nos conduzir a pensar exclusivamente na mulher. Toda a nossa atenção se dirige mecanicamente para aquela que está grávida. Naturalmente, alguma campanha “aproveita a boleia” desta expressão para veicular nas suas imagens o drama das mulheres que são julgadas e atingidas na sua dignidade. Claro que, se se usasse a palavra “aborto” tudo em nós se deixaria conduzir noutra direcção: na direcção do “não-nascido” (ab-ortus significa exactamente “não-nascido”). Importa, então, tomar consciência da não neutralidade da linguagem e para onde estamos a ser levados pelo modo como somos questionados neste referendo.

Segundo: a pergunta é enganosa. Duas palavras induzem em erro: a palavra “interrupção” e a palavra “despenalização”. “Interrupção” significa suspender qualquer coisa a retomar mais tarde. Neste caso, obviamente, não haverá nada a retomar, uma vez que uma gravidez “interrompida” equivale necessariamente ao seu termo. “Despenalização” significa não atribuir uma pena a um determinado crime. Há determinados actos que a sociedade não aceita mas que, dada a complexidade da situação e das pessoas nela envolvidas, a lei prevê outro modo de gerir tal situação que não a atribuição de uma pena de prisão. Exemplo desta situação é a do consumo de drogas leves. Não se vai para a prisão por se consumir uma “dose” de haxixe (a lei nestes casos passou a considerar contra-ordenações a que corresponde uma coima, mas nunca uma pena de prisão). Mas isto não significa que o Estado facilite a comercialização das referidas drogas, ou se abstenha de tomar medidas de prevenção e de combate ao consumo de drogas leves. Ora, o que acontece com o caso de aborto, segundo a proposta a referendar, é que o Estado assegurará os serviços da “interrupção voluntária da gravidez” nos hospitais públicos ou subsidiará os mesmos em estabelecimentos privados. Isto significa liberalização; não despenalização.

Tudo isto sem falar da palavra “voluntária” que implicaria uma liberdade e uma consciência que, como todos sabemos, não é nada óbvio que estejam presentes na mulher que se interroga sobre a hipótese de abortar. De facto, as pressões são tantas (sociais, familiares, laborais…) que dificilmente encontraremos uma mulher livre a voluntariar-se para abortar.


ii) As 10 semanas

Se alguma alteração houve no debate de há 8 anos para cá, essa alteração é que hoje já ninguém discute verdadeiramente se às 10 semanas há ou não há vida. Todos os que querem ser intelectualmente honestos afirmam haver vida.

O processo de desenvolvimento embrionário que começa na fecundação é um processo continuado, com fases distintas, mas sem quebras. Do ponto de vista da embriologia, tentar demarcar fronteiras que delimitem uma fase “sub-humana” e outra “plenamente humana”, é sempre considerada artificial, pois o processo é um continuum desde a fecundação até ao nascimento (ou melhor, à morte). Há quem invoque a dúvida acerca da formação do tronco cerebral ou se o feto sente dor ou tem total consciência. Mas este debate revela-se insignificante, pois se há uma vida e essa vida é humana, acabar com ela porque quem a vive não sente ou não tem consciência é eticamente irrelevante. Quando se trata de uma pessoa nascida, não é o facto de se provar que está inconsciente ou que não sente dor que torna lícito tirar-lhe a vida.

Há autênticos dramas que levam uma mulher a ponderar a hipótese de abortar. Há aborto clandestino. Há, naturalmente, do lado de quem é pelo “sim” neste referendo, valores a defender. Mas o que fica por explicar é o limite das 10 semanas. Não há nada que possa cientificamente servir de “fronteira das 10 semanas” neste processo. Há, então, que demonstrar o porquê deste prazo. Se há valores suficientes para abortar até às 10 semanas, esse valores decrescem assim tanto às 10 semanas e 1 dia? E se um caso dramático deixa passar as 10 semanas? É que se “despenalizamos” (legalizamos) o aborto até às dez semanas, quer dizer que o penalizamos a partir das 10 semanas e 1 dia. Ou não?
Se uma mulher é enxovalhada e ferida na sua dignidade ao ser julgada pelo crime de aborto até às 10 semanas, a dignidade desta mesma mulher já não é sequer beliscada se ela se sentar no banco dos réus às 10 semanas e 1 dia?


iii) Ética social

Ninguém esconde que há situações dramáticas que levam mulheres a optar por fazerem um aborto. Mas o que levanta sérias questões morais é a total desresponsabilização do Estado ao optar por apoiar (que no caso se pode confundir com incentivar ou estimular a prática) essa decisão (ao fornecer todas as facilidades) em vez de combater as causas dos referidos dramas. Para o Estado, é muito mais fácil e muito mais “eficaz” “resolver” uma situação dramática eliminando uma parte do problema de forma rápida e limpa. Mas resolve mesmo?
Primeiro: o que é que custa mais? Investir na educação e na formação humana desde a idade infantil, gastar na formação para uma sexualidade responsável, institucionalizar mais e melhor todos os apoios a nível social local na formação para o planeamento familiar, ter técnicos a nível psicológico, social e cultural-étnico que possam acompanhar mulheres e famílias em situações económica e socialmente degradáveis… ou apoiar o aborto?
Segundo: que resolução é esta? O problema que uma mulher vivia antes de abortar, ter-se-á resolvido com este aborto? Não se terá antes, não só adiado a sua situação dramática, como ademais se lhe adicionou um novo problema? É que, se a pessoa vivia em situação económica, social ou psicologicamente dramática, o aborto não resolveu absolutamente nada. A sua situação não mudou. E o Estado não fez absolutamente nada para a alterar.
Terceiro: é, de facto, uma promoção da liberdade democrática e da igualdade da mulher face ao homem? A mulher é, afinal, abandonada no ter que tomar esta decisão crucial em total solidão. O homem não é tido nem achado, seja na decisão, seja na penalização (se for depois das 10 semanas). Não é esta uma maneira de, sob o belo embrulho da autonomia da mulher, desresponsabilizar o homem de todo este doloroso processo? E a que responsabilidade pode ele moralmente sentir-se chamado na educação dos filhos (por exemplo, em caso de separação), se o aborto até tinha sido uma possibilidade legal e a mulher não o quis? Na realidade, esta é uma lei que fragiliza ainda mais a mulher e a deixa entregue a si mesma num mundo que está longe de viver a justiça e a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres.
Quarto: esta é uma lei que abre a porta para todos os abusos a nível laboral. Mais uma vez, é a mulher que está sujeita a ser “encostada à parede” e a viver uma maior precariedade no emprego. Diante desta lei, o que poderá impedir o empregador de pressionar (para não dizer “obrigar”) a mulher a “interromper voluntariamente a gravidez” porque a empresa não pode ficar sem ela durante tanto tempo? E até é legal…
Quinto: a mensagem cultural que a lei envia para a sociedade é que o aborto é eticamente aceitável. A lei tem um elemento pedagógico. O que é permitido pela lei não é mau. Vai-se construindo um modo de agir. E todos temos a tendência para inteligentemente irmos justificando os nossos comportamentos. Com mais aborto, mais aborto surgirá. Diante das situações difíceis, perante tantas e tão pesadas pressões e com o aborto como uma opção legal livremente disponível, a mulher – que noutra situação, apesar de todas as dificuldades, levaria a gravidez até ao fim – vai-se sentindo psicologicamente (com todos à sua volta) cada vez mais impotente e incapaz de “aguentar” uma situação que se tornou verdadeiramente insuportável. Vai-se tornando mais e mais difícil, quase impensável, não usar o aborto para resolver a situação de uma “gravidez problemática”. Faz-se, assim, um caminho que psicologicamente percorre a trajectória da opção à “inevitabilidade”, da escolha à “necessidade”.
Sexto: vale a pena falar dos lobbies das clínicas privadas? É que não sabemos como será exactamente a lei se o “sim” ganhar. Por isso, nem sabemos se vai ser exigido algum acompanhamento específico à mulher que pretende abortar. Bastará bater à porta das clínicas (já existentes, mas não legais) e pedir para fazer um aborto? De facto, a lei prevê o “aborto a pedido”… Juntamente com o quarto ponto acima, este mostra como o capitalismo selvagem, no seu melhor, é protegido por esta proposta de alteração da lei.

Com esta posição não se pretende desrespeitar nem, absolutamente, menosprezar quem pensa o contrário. Da parte de quem defende o “sim” há, naturalmente, valores que levam a essa resposta. Claro que não me passa pela cabeça negar a existência desses valores (com a liberdade de escolha pessoal da mulher à cabeça – batalha travada ao longo da história e começada a ser ganha no sec. XX). Nem tampouco nego a existência da preocupação de quem vota “sim” pelos problemas e situações dramáticas vividas por tantas mulheres.
Mas, depois de desmascarada a proposta de alteração da lei actual, torna-se mais claro que essas preocupações e esses valores não são protegidos – antes são subtilmente adiados. Mais ainda, estes valores em si, ainda que fossem protegidos pela lei, e por muito altos que possam ser, não estão ao nível do valor da vida intra-uterina que não se pode negar ser vida e não se pode negar ser humana. Finalmente, todos os valores defendidos por quem honestamente opta pelo “sim” neste referendo parecem-me cair totalmente por terra com uma lei que promove o aborto a pedido, sem mais. Uma lei assim é uma lei que não se preocupa honestamente em pesar os verdadeiros valores de um lado e do outro. Porque, mesmo que o único “valor” seja o de não “apetecer” ter mais filhos, esse, segundo a nova proposta, é suficiente para abortar. O facto de ser “a pedido”, sem ter que dar a mínima justificação (o que, mesmo que se diga o contrário, não acontece em Espanha, nem em França, nem na Bélgica, nem na Alemanha, nem noutros países europeus), é claramente anti-qualquer-tipo-de-ética. Por estas razões (e muitas mais se poderão acrescentar) penso ser mais lógico afirmar que o “não” é a resposta eticamente correcta à pergunta eticamente duvidosa deste referendo.

Miguel Almeida, SJ