segunda-feira, abril 30, 2007

As palavras que ficam

CARTA DO CANADÁ

por Fernanda Leitão

Desde a noite dos tempos o culto da palavra, o respeito pela palavra, fizeram chegar até nós a noção do peso e importância da palavra. Nenhuma filosofia, literatura, ciência, religião ou cultura poderiam ter chegado até nós sem o precioso contributo da palavra. De tal modo que, olhando para trás, compreendemos facilmente que se perderam civilizações, países, povos e guerras, por não se ter honrado a palavra dada ou por se terem derramado sobre eles palavras venenosas. Mas também, e com que alegria o verificamos, podemos usufruir da herança de palavras que nos foi legada através dos séculos.
Porque assim é, sempre os escritores, de todas as épocas e raças, de todos os credos e culturas, assumiram uma importância imensa no património de cada nação, e no final, da humanidade. Refiro-me, claro, aos que escreveram as palavras que ficam, as palavras que atravessam a memória dos tempos, ressoando sempre na alma humana como campaínhas de prata. Essas palavras e esses escritores que quem ama a palavra guarda como amigos queridos a vida inteira, e os transporta consigo, vá para onde vá, e os tem à cabeceira da cama para reler, ano após ano, na intimidade sem defesas que antecede o sono. Poderá lembrar alguns escritores que deixaram más palavras, apenas porque elas foram escritas com génio, mas não terá com eles a intimidade dos amigos que se levam para o quarto onde se repousa, onde se ama, onde se sofre ou mesmo se morre.
Se um escritor consegue gravar as suas palavras na memória das pessoas, esse é um escritor que fica na história da literatura do seu país, esse regato que vai engrossar o vasto mar da humanidade. Quando chegamos a uma idade avançada, e levamos de longada muitos anos de leituras, de teatro, de palestras, de conferências, sabemos bem que é assim. Quantos publicaram livros às catadupas, como coelhas parideiras, quantos gozaram dos favores de regimes políticos ou de críticos compráveis, quantos foram ensopados em prémios e em sucessivas edições, quantos o tempo cruel lançou ao esquecimento. Porque é o tempo quem avalia um escritor.
Causa um certo desgosto entediado observar a torrente de livros que se publica em Portugal, por exemplo, com direito a lançamentos mundanos e badalados, o que logo dá direito aos autores mais insípidos a serem catapultados a oráculos de quem se espera saberem tudo o que diz respeito à digestão fácil, desde a bondade do governo, a legitimidade (ou não) do planeamento familiar ou o fashion style do ano imposto pelos gurus da alta costura. Causa tédio, porque é garantido que, antes mesmo de terem netos, já ninguém saberá quem eles são. Em contrapartida, este tsunami editorial tem a virtude de obrigar os leitores a escolher entre a quantidade e a qualidade.
Entre o escritores de alta qualidade em Portugal, Lídia Jorge é uma escritora que ficará. Percebi isso quando, em 1980, li o seu primeiro livro, O Dia dos Prodígios. Foi um ano atormentado e estranho, por causa daquele avião em que perderam a vida Francisco Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa e seus acompanhantes, porque na nossa terra estas tragédias políticas não são familiares nem frequentes. Aquele livro, no seu enredado encanto, trazia a força da palavra. Era até premonitório. E que bem escrito! Pensei para comigo que tinha nascido uma grande escritora. Não me enganei. Aí está a sua obra para o demonstrar eloquentemente.
Lídia Jorge acaba de publicar um livro que será um marco luminoso para todos quantos acreditam que a palavra pode redimir, todos quantos se recusam a aceitar os aleijões sociais como norma: Combateremos a Sombra. Numa escrita despojada e limpída, forte e cheia de cor, num estilo imbatível, Lídia Jorge dá a medida do seu enorme talento e do seu vertical civismo ao contar uma história que nos agarra, entre luzes e sombras, em que se resume este nosso tempo de corrupção, crime organizado, morte encomendada, e também do dever da indignação da paz imensa do serviço à comunidade.
O livro lê-se com repugnância de parar. Vem no momento certo. A corrupção estendeu-se, como uma sombra maldita e contagiosa, por todo o mundo. Tudo se compra e se vende. Não se respeita a vida de quem tenta travar os interesses dessas multinacionais do crime e da ganância. Há povos inteiros envenenados por este estado dentro dos estados. O fenómeno também tem farto lugar em Portugal , porque grande número de pessoas, moralmente desarmadas, esquecidos os princípios do Ser na corrida ao Ter, foram de concessão em concessão, de silêncio em silêncio, de jeitinho em jeitinho, e o resultado foi este terreno fecundo onde a corrupção medrou e estendeu raízes. Se dissermos às pessoas que meter cunhas é corrupção, que dissipar os dinheiros públicos em promoções pessoais é corrupção, que ocupar de favor lugares para os quais não se está habilitado é corrupção, que copiar páginas inteiras de livros e revistas e publicá-las, apondo o seu próprio nome em baixo, é corrupção, que mentir para abocanhar subsídios, reformas indevidas e mordomias várias, é corrupção, enfim se dissermos tudo isto e muito mais às pessoas, elas ficarão chocadas e nem acreditarão. No entanto, estão a contribuir, de facto, para o avanço desta sombra maligna que está a enegrecer o mundo. Portugal incluído. O maior inimigo da Liberdade, o inimigo fatal da Democracia é a corrupção, porque ela leva à cedência moral, ao abuso e por fim ao crime, quase sempre abrindo a porta larga à Ditadura.
A História da Literatura Portuguesa registará Lídia Jorge em lugar cimeiro. Os portugueses que amam a Liberdade, os que querem a Pátria limpa e servida com verdade, ficam a dever a esta escritora mais do que um belo livro: devem-lhe a exigência consigo próprios, a tarefa nobre de exercerem o direito à indignação, o brio de perderem o medo e falarem alto e claro. Este livro, a exemplo de alguns que foram publicados durante a Ditadura que os portugueses sofreram durante 48 anos justamente por não terem, em massa, exercido o direito à indigação, pode representar uma viragem entre os mais jovens. O futuro a este livro.

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