sábado, maio 03, 2008

A terceira morte do general Delgado

por Frederico Delgado Rosa

neto e biógrafo de Humberto Delgado

Em 1982, o jornalista Manuel Geraldo publicou o livro A Segunda Morte do General Delgado, para denunciar o julgamento de Santa Clara, onde todos os réus foram ilibados à excepção do autor material do homicídio, Casimiro Monteiro. Os juízes acharam convincente - e conveniente - a tese de que a brigada da PIDE tinha ido a Badajoz apenas para "raptar" Humberto Delgado, e não para o matar. A imagem de Casimiro Monteiro disparando contra Humberto Delgado entranhou-se na consciência colectiva, mas a verdade é que a ilibação dos pides só foi possível graças a uma distorção grosseira da verdade material do homicídio. Os juízes refutaram as perícias espanholas com recurso a métodos indignos de um país democrático. Humberto Delgado foi mais maltratado pela justiça militar do pós-25 de Abril do que pela justiça da ditadura de Franco. Há pessoas interessadas em que a verdade não venha ao de cima. São aliás as mesmas que gostariam que o processo do Tribunal de Santa Clara sofresse danos irreparáveis.

Em 2007, para concluir a biografia de Humberto Delgado, precisei de consultá-lo. Já o tinha feito em Santa Clara, mas entretanto os tribunais militares foram extintos. Até que telefonei para o Tribunal da Boa Hora e a funcionária gritou para a colega: "Ó não-sei-quantas, tens cá o processo do Humberto Delgado?" Fui conduzido à cave e ali passei dias, sozinho. Alertei a Fundação Humberto Delgado para o mau estado de conservação, tudo empilhado no chão, em duas colunas de caixas esmagando-se entre si. Também alertei para o risco de desaparecimento, bem real quando uma funcionária disse: "Fez bem em vir, que estes processos velhos qualquer dia vão todos para o lixo."

A fundação escreveu ao juiz de direito da 2.ª Vara Criminal, sugerindo a transferência urgente do processo para um arquivo histórico. Ora, o juiz informou que ainda se encontrava aberto, por não se saber se estava vivo ou morto o réu Casimiro Monteiro. E mais informou que "este tribunal não antecipa decisões e, chegada a sua hora, as tomará em conformidade". Foi grande a surpresa! Com efeito, há dez anos atrás, aquando da entrada impune de Rosa Casaco em Portugal, gerara-se uma polémica em torno da prescrição dos seus crimes. É pois interessante constatar que a justiça não considerava prescritos os crimes de Casimiro Monteiro. Entretanto, a decisão do ministro da Justiça de decretar a transferência do processo para a Torre do Tombo pôs cobro aos riscos a que estava sujeito. Houve até uma coincidência perfeita entre essa decisão e a saída da biografia de Humberto Delgado, onde refiro que o desaparecimento do processo seria "a terceira morte do gen. Delgado", pela qual responderia uma vez mais a justiça. Subsistem dúvidas neste caso. Como foi o próprio ministro a dizer que o processo passava para a Cultura, depreende-se que agora se encontra encerrado. O que permitiu encerrá-lo? Foi uma decisão política? O Tribunal da Boa Hora obteve provas de que o réu Casimiro Monteiro está morto? Foram considerados prescritos os seus crimes?

Na leitura solene do auto de entrega à Torre do Tombo, foi dito que o processo é constituído por 18 volumes principais e 45 apensos, quando na realidade tem 69 apensos! Pude consultá-los e listá-los no Tribunal de Santa Clara e voltei a fazê-lo na cave da Boa Hora. O que lhes aconteceu e o que lhes vai acontecer? Será que afinal está mesmo a acontecer, diante dos nossos próprios olhos, a terceira morte do general Delgado? Outro momento curioso da cerimónia de 23 de Abril foi a intervenção dr. Mário Soares, desde a afirmação abstrusa de que Humberto Delgado foi "morto pelas costas" até à repescagem de ideias erradas do processo espanhol, como a de que Arajaryr Campos não foi assassinada no mesmo local. Mas sobretudo retomou a tese de que a brigada foi a Badajoz para prender e não para matar Humberto Delgado. Mais ainda, afirmou que, tendo Humberto Delgado puxado de uma pistola, o Casimiro Monteiro o matou. Traduzido por miúdos, este raciocínio coloca a legítima defesa no assassino, e não no assassinado. É caso para perguntar: a quantas mais mortes será sujeito Humberto Delgado em Portugal?

In Diário de Notícias, 3 de Maio de 2008

1 comentário:

Dylan disse...

"Lembrar Abril"


Nesta altura do ano surgem sempre os detractores da Revolução de Abril - uma espécie de saudosistas do Estado Novo - pois "antigamente é que era bom", dizem eles. Como se 40 anos de obscurantismo não tivessem atrasado irremediavelmente o País e a Pide fosse uma qualquer organização sócio-cultural! Esta nostalgia serôdia dá náuseas e piora quando falam com desdém do "excesso de liberdade" e da democracia.



Mas será que esta gente não se lembra do que acontecia no tempo do pseudo-estadista? A colagem ao fascismo, as repressões políticas e públicas com a vergonhosa conivência da igreja católica, a censura literária, a educação baseada num nacionalismo bafiento, da interminável Guerra do Ultramar e do obsessivo colonialismo.


Actualmente parece que entramos num processo de regressão pois inauguram-se ruelas com nomes de ditadores existindo também regiões do País que ignoram a data. Convém explicar às gerações futuras que a História não pode voltar a repetir-se e que a morte de homens como Humberto Delgado não pode ter sido em vão.

http://dylans.blogs.sapo.pt/