domingo, dezembro 14, 2008

Esperança apesar de tudo

CARTA DO CANADÁ
Fernanda Leitão

A sopa de grão com espinafres, quentinha, a saber a lar de família, saboreada por centena e meia de pessoas, na sua maioria idosas, sentadas ao longo de mesas decoradas com sóbrio gosto. Os pequenos papo-secos portugueses com manteiga a anularem dietas de quem carrega contenciosos com a tensão arterial trepadora. O perú recheado e um puré de batata a trazer recordações de juventude. A tarte de maçã com sorvete, à boa moda canadiana. O café, fraquinho, mas saboroso, a acompanhar aquele lado a lado sem formalismo de quem aprendeu, a milhares de quilómetros da Pátria, que somos, de facto, irmãos. Para o que der e vier, seja almoço de Natal, seja doença ou luto, pouca sorte ou alegria a celebrar.

Lá fora soprava um vento polar e arauto de neve a vir. Mas aquele salão da Saint Christopher House, no coração da comunidade portuguesa de Toronto, aquecia como um bom abraço. Instituição de solidariedade social que tem as suas portas abertas desde os anos 20 do século passado, prestando muitos e relevantes serviços a idosos e doentes, é um verdadeiro centro de dia para muitos portugueses que se viram na contingência de emigrar e, neste país imenso, muito trabalharam, lutaram e envelheceram. Ali tomou corpo o grupo Mulheres Portuguesas 55 + que, entre outras actividades meritórias, faz teatro mudo, que nem por sê-lo deixa de ser uma forte denúncia das injustiças, e até violências, a que os seniores podem estar sujeitos, quantas vezes no seio da própria família. Tanta força tem esse meio de comunicar que o grupo é frequentemente convidado a exibir-se nos centros comunitários das muitas etnias emigradas na cosmopolita Toronto. A Casa atingiu o seu ponto alto pela mão de duas senhoras portuguesas, a directora e a coordenadora, Odete Nascimento e Isabel Palmar, respectivamente vindas de Moçambique e de Benavente.

À medida que foram chegando os artistas que animaram a tarde, foi a curiosidade, a festa. E todos eles cumpriram galhardamente, incluindo uma antiga fadista que, na sua cadeira de rodas, aos 80 anos, empolgou a sala com a sua ainda forte voz a soltar as cantigas que foram cantadas por gerações. Comovente, pela beleza e espiritualidade de algumas canções, e sobretudo pela ternura com que abraçou e se deixou abraçar, enquanto cantava, o artista Belmonte, que pôs toda a sala a dançar, a cantar, a marcar com palmas o compasso.

Por todas as razões que sabemos, pelos jornais e pelas contas que temos de fazer diariamente, este bem podia ser o Natal do Nosso Descontentamento. Mas não ali, na sala grande daquela Casa. Porque ali, todos aqueles rostos curtidos pelo tempo, todas aquelas cabeças embranquecidas pela vida, que já viram muitas recessões e muitas carências, e tudo ultrapassaram, todos detinham o segredo da resistência: o amor. É que só por amor se resiste a maus fados de Pátria que nos atiraram para longe, só por amor nos damos as mãos onde quer que estejamos, só por amor mantemos a esperança contra ventos e marés. Um amor que não se explica e mal se soletra, que nos foi legado por um carpinteiro pobre.

Tenha um Santo Natal, meu caro leitor. E acredite que vai vencer o ano que aí vem.

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