quarta-feira, janeiro 07, 2009

Esperanças russas e chinesas



Andrew Osborne, “As if Things Weren't Bad Enough, Russian Professor Predicts End of U.S. - In Moscow, Igor Panarin's Forecasts Are All the Rage; America 'Disintegrates' in 2010”, The Wall Street Journal, 29 de Dezembro de 2008. http://online.wsj.com/article/SB123051100709638419.html

Melik Kaylan, “Russia Looks At America, Sees Itself - Moscow celebrates an academic who predicts U.S. demise”, Forbes, 6 de Janeiro de 2009. http://www.forbes.com/opinions/2009/01/05/russia-america-secession-oped-cx_mk_0106kaylan.html?partner=commentary_newsletter


Um destacado professor russo, Igor Paranin, prevê a desagregação dos EUA (ver mapa). O texto de Andrew Osborn, em referência, é no essencial uma notícia acerca da previsão de Paranin e da projecção que lhe tem sido dada nos meios de comunicação russos, enquanto o texto de Melik Kaylan vai um pouco mais longe, dando-nos a sua perspectiva sobre o que serão os erros de apreciação de Paranin.

Os argumentos de Kaylan podem resumir-se a uma ideia fundamental: os EUA não são como a totalitária URSS, sendo antes "uma democracia" e, por isso, vão reagir e adaptar-se às actuais dificuldades.

Kaylan reconhece que os americanos têm tolerado e convivido com regimes autoritários mas, diz, tal terá acontecido para proteger os "valores democráticos" no longo prazo. As actividades militares dos EUA no exterior, incluindo as duas guerras mundiais, não seriam motivadas por um cínico desejo de poder. Para Kaylan, os “valores democráticos” dos EUA não são como que um ecrã por detrás do qual se esconde um império. Os EUA seriam uma espécie de benfeitores humanitários, altruístas, que apenas desejam que o seu “sistema democrático” se difunda pelo mundo, para assim levar o melhor bem ao maior número possível de pessoas.

O que nos parece interessante na resposta do americano Kaylan ao russo Paranin, é o facto de ele não rebater o essencial da tese que contesta: a actual crise financeira e económica vai levar à desintegração dos EUA. O argumento de Paranin, que não é de todo irracional, pode soar assim: quando a actual crise for mais profunda, e os problemas económicos e sociais se agravarem, os estados mais ricos da federação não vão querer manter a solidariedade com os estados que estiverem em maiores dificuldades. Dadas as diferenças culturais e políticas entre os diferentes Estados americanos, quando a crise se tornar socialmente tumultuosa, estarão criadas as condições para a guerra civil e o desfazer da federação.

Para Kaylan, a perspectiva de Paranin acerca da desagregação dos EUA limitar-se-ia a reflectir como num espelho a desagregação da URSS. O paralelismo é muito atraente e sugestivo, e Kaylan desliza nele ao ponto de retribuir dizendo que a Federação Russa pode também estar a caminho da desagregação. A tese pode aplicar-se à URSS, e mesmo à Federação Russa, mas creio que ambos reconhecerão que só muito dificilmente se virá a aplicar à Rússia. Na desagregação da URSS, foi em torno do seu núcleo duro - a Rússia - que a federação se constituiu.

A Rússia foi na verdade capaz de resistir à queda da URSS, e tal ficou a dever-se a uma diferença específica do contexto político da Eurásia, onde existem nações multisseculares, com histórias e tradições capazes de sobreviver às mais dramáticas mudanças de regime político-económico. Aqui, na Eurásia, os regimes podem mudar, mas as nações têm tido uma notável capacidade de resistência. Tê-la-á os EUA?

A fuga do americano Kaylan para as remotas paisagens da URSS, deixa afinal sem resposta o que de mais importante é dito por Paranin acerca dos EUA. No fundo da perspectiva de Paranin, a “federação de estados” que se designa por EUA, e que foi no essencial forjada na guerra civil do século XIX, tem tido por cimento agregador o crescimento económico e a perspectiva do lucro. Persistindo significativas diferenças entre os seus diferentes Estados, quando a crise económica se revelar em toda a sua extensão, revelar-se-á também que os EUA pouco mais serão do que uma “gigante empresa” de accionistas.

Esta perspectiva poderia ser contestada dizendo-se, por exemplo, que, após a Guerra Civil Americana, os EUA criaram um mercado interno e transformaram-se numa nação. Do que se pode também duvidar. Será que a existência de um mercado interno é suficiente para criar uma nação? Terão as instituições políticas federais dos EUA capacidade ou vocação para produzir uma nação?

A respeito dos EUA, não é possível responder a essas perguntas. Após a Guerra Civil, os EUA ainda não passaram por qualquer crise que tenha posto à prova a sua unidade nacional. O que sabemos é que os EUA chegaram onde estão hoje, arredondando o seu vasto território com guerras e dólares. E que foi por intermédio de duas guerras mundiais que conseguiram destroçar o extremo ocidental da Eurásia, acabando depois por consolidar a sua posição hegemónica global quando, de parceria com a URSS, expulsaram os europeus da Ásia e de África.

Desfeita a URSS, o poder global dos EUA parecia indisputado, mas esse poder tem vindo a ser posto em causa, de forma mais ou menos explicita, pela Rússia, China, e pelos chamados "Estados emergentes". Pode dizer-se que, em breve, e no quadro da grave crise económica que se anuncia, os EUA podem vir a ser confrontados com um verdadeiro “teste de vida”.

Não é garantido que a crise económica os possa vencer. Além do imenso poder tangível de que dispõem, económico e militar, os americanos detêm outros importantes recursos, valendo recordar, antes de mais, que são eles quem continua a possuir a maior industria cultural e os mais poderosos meios de comunicação, capazes de difundir e verdadeiramente impor ideias e modos de pensar à escala global. Não tem sido suficientemente notado, mas a pedra de toque da expansão do domínio global dos EUA tem sido a difusão da ideia de que "a Democracia" é sinónimo de sufrágio inorgânico, e de Estados geridos por partidos ideológicos e presidentes. E os EUA não se têm limitado a exportar a ideologia. Através dos seus vastos recursos económico-financeiros, nenhum Estado tem tido tanta capacidade para realmente produzir presidentes e primeiros-ministros em qualquer ponto do planeta. E, não os conseguindo através de votos, ou de cenouras e cacetes, a verdade é que os tem conseguido também a tiro.

O poder global dos EUA depende hoje, como nunca, do acesso às fontes de energia e de matérias-primas. Nesse aspecto, uma má notícia para os adversários dos EUA foi a eleição de Obama, e precisamente por ter introduzido o “factor melanina” na equação militar-estratégica global. Se os EUA se virem forçados a uma retirada estratégica da região do "Northern Tier" (Turquia, Irão, Iraque e Paquistão) para África, estão hoje em melhores condições para gerir com sucesso o seu domínio sobre um continente muito rico em petróleo e minerais estratégicos.

O desafio da Rússia na Europa Ocidental e no Cáucaso não é decerto para menosprezar, mas o desafio chinês é bem mais importante, tendo por isso sido já posta em marcha uma nova ofensiva político-ideológica, com o objectivo de pôr a República Popular da China de joelhos: a “Carta 08”.

Devido à crise económica, sem dúvida que os EUA podem vir a ser confrontados com um "teste de vida". Essa parece ser a esperança de Moscovo mas, depois de ter sido lançada a “Carta 08”, sê-lo-á também decerto de Pequim.


Ref:

http://www.cfr.org/publication/18073/chinas_charter_08.html Carta 08

1 comentário:

João Miguel Almeida disse...

São análises estimulantes, mas que estranhamente não têm em conta o «teste» da Grande Depressão e não procuram explicar por que é que os EUA resistiram à crise de 1929 mas não resistiriam à de 2008.
Eu acho que o cenário do professor russo seria potenciado por outro resultado nas eleições norte-americanas: se MacCain ganhasse e ficasse incapacitado, assumindo a Presidência Sarah Palin.
Obama, além de melhorar a imagem dos EUA no exterior, incluíndo África, parece-me um líder mais forte e mais capaz de unir diferentes tendências políticas, como se está a verificar na escolha do elenco do seu futuro Governo.