sábado, janeiro 03, 2009

Um santo que eu conheço

CARTA DO CANADÁ

por Fernanda Leitão


Digo-o lisamente: Deus tem-me dado muito mais do que mereço. E uma das mais imerecidas bençãos é o ter conhecido verdadeiros santos. Alguns já deixaram este mundo e desses poderei falar sem cometer uma incorrecção apontada pelo Arcebispo Emérito de Braga, Dom Eurico Dias Nogueira, que um dia, no Santuário do Sameiro, e perante largos milhares de pessoas, referiu que não dizia os nomes de umas pessoas ainda vivas, de quem apontava o louco amor pela Pátria, pois “os santos não têm tripas”.
Quem sou eu para não prezar as doutas palavras do ilustre prelado que tão bem serviu a Igreja, em Portugal e em África? Mas arrisco o pecado citando um santo ainda vivo, certa de que todos compreenderão que os países precisam de referências morais palpáveis, vivas.
Outra benção que sobre mim se derramou foi ter nascido em África e ter vivido largos anos em Tomar, em pleno Ribatejo, para não ter de passar pelo desgosto de ser de Lisboa e não ir à terra, como acontece com vários amigos meus. Viver na província põe-nos os pés assentes na terra, ensina-nos a viver frugalmente, a conhecer toda a gente pelo primeiro nome, a guardarmos as pessoas de referência como quem protege um tesouro.
Foi assim que, naqueles dias sombrios dos princípios de 1976, esses em que não há palavras onde caiba a mágoa de um império de 500 anos caído de forma tão feia, entrei numa pensão de Vila Nova de Ourém que estava a abarrotar de pessoas a quem chamavam “retornadas”. Era uma mole de gente silenciosa, de olhar perdido e faces contraídas. Notei um homem que parecia totalmente perdido, a caminhar pelos corredores apalpando as paredes. Meti conversa com ele. Veio de Cabinda com a roupa do corpo e uma mágoa suplementar: as tropas cubanas tinham saqueado tudo, até o cemitério local, donde levaram as placas de mármore das sepulturas, e uma delas era a da falecida mulher deste português. Sobre isto, estava cego, referiu uma doença a exigir cirurgia mas ele estava desmunido de todos os meios. Lembrei-me, de repente, do que se dizia de um oftalmologista de Santarém, o Dr. Joaquim Gonçalves Izabelinha. Que era um santo, dizia toda a gente. Pedi licença ao meu interlocutor e fui ao escritório da pensão saber se havia algum voluntário que transportasse este homem a Santarém e entregasse uma carta minha ao médico. Havia e eu regressei confiadamente às lides do TEMPLÁRIO, jornal que então dirigia. Tempos depois fui a Ourém saber o que se passava e a minha alegria não podia ser maior: o Dr. Izabelinha, mesmo sem me conhecer, operou, instalou e manteve aquele homem que, diante de mim, já via. Escrevi ao médico a agradecer e assim começou uma amizade epistolar de muitos anos. Acabámos por nos conhecer pessoalmente e demo-nos um grande abraço.
Desportista na Académica de Coimbra, enquanto estudante, no tempo em que ser da Briosa era quase como tomar ordens num culto, a Medicina foi para este ribatejano um instrumento da santidade com que tem vivido. Fez bem sem olhar a quem, ajudou tudo e todos, incluindo jornais onde ele sentisse o cheiro do patriotismo e da verdade. E fê-lo com humildade, quase que a pedir desculpa, apagado, simples. Repassado de tristeza pela morte da mulher e da filha, revia-se no filho que lhe sucedeu na oftalmologia, e tentava dar a todas as dores a alegria e a esperança.
Este santo com tripas fez agora 100 anos. E eu, nesta lonjura de cinco mil quilómetros, venho associar-me às homenagens e dizer ao meu caro leitor que valeu a pena viver para encontrar este santo varão que tanto honra todos nós.

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