terça-feira, abril 21, 2009

Amar a humanidade, desprezar o próximo

por João César das Neves

Rousseau, profeta inspirador da cultura moderna. A sua lista de trafulhices, indignidades e oportunismos é infinda

Acaba de sair a edição portuguesa de um dos livros mais reveladores do nosso tempo. Publicado em 1988, Intellectuals, de Paul Johnson, não perdeu relevância e dramatismo nos 20 anos que o separam da sua tradução (Intelectuais, Guerra & Paz, Lisboa, 2009).

A obra consta apenas de doze pequenas biografias, mas a breve colecção inclui algumas das principais figuras dos últimos 200 anos e alguns dos maiores safados, crápulas e bandidos que se pode imaginar. Notável é que as personagens são as mesmas em ambos os casos. Johnson mostra à evidência como os intelectuais que inspiraram o mundo contemporâneo foram terríveis patifes na sua vida privada.

A lista é impressionante. Jean-Jacques Rousseau, Karl Marx, Bertrand Russell e Jean-Paul Sartre, entre outros, aparecem culpados dos comportamentos mais infames, enganando mulheres, desprezando filhos, aldrabando amigos, roubando, seduzindo, manipulando tudo e todos. O elemento comum é um paroxismo de egoísmo e arrogância. Estes onze homens e uma mulher vivem totalmente autocentrados, usando escandalosa e vergonhosamente os outros para proveito próprio.

Qual a relevância destas informações e mexeriquices? Todos sabemos que os génios costumam ser exóticos e inconvenientes, e todos os desculpamos pela sua grandeza. É razoável perdoar-lhes os pecadilhos pelas maravilhas que fazem. Que importa a vida pessoal de Mozart ou Edison, de Newton ou Rembrant ao lado da herança majestosa que deixaram? Mesmo entre os nomes referidos, a análise económica de Marx ou os teoremas de Russell não sofrem pelo mau carácter dos seus autores. Será Johnson um oportunista, denegrindo grandes nomes com acusações mesquinhas?

O que o autor capta nestes doze casos é algo muito diferente. Estas pessoas não foram escolhidas pelas realizações científicas ou artísticas, mesmo quando as tiveram, mas pela influência intelectual. Foi como inspiradores morais, oráculos políticos, reformadores sociais que estes nomes pontificaram, e ainda pontificam, acima dos demais. Num tempo sem fé, Tolstoi, Shelley, Ibsen ou Brecht, além dos já referidos, foram venerados como sumo sacerdotes de um mundo mais elevado e perfeito, luminárias do homem novo. Os outros, Hemingway, Edmund Wilson, Victor Gollancz e Lilliam Hellman marcaram a moda e arbitraram o gosto na sua geração, enquanto todos se enredavam numa degradação ética e humana quase repelente. Ou eram incoerentes com as suas ideias ou estas escondiam horrores inconfessáveis. Em qualquer dos casos tais observações biográficas são muito relevantes para a interpretação da obra.

A razão profunda da contradição é, ela mesma, decisiva. Todos estes pensadores colocaram uma ideia abstracta acima da vida real daqueles que os rodeavam. A sua teoria, o seu génio, eram superiores a parentes, amigos, honestidade, honradez, decoro, simples decência. Esta é a origem do crime. E da obra. Em todos os relatos surge sucessivamente um mesmo tema: o amor à humanidade. É notável como todos estes grandes autores estão apaixonados pelo género humano. Mas o ideal abstracto acompanha um profundo desprezo pelas pessoas concretas que os rodeiam. Amam a humanidade e abominam a gente.

Um caso exemplar é Rousseau, profeta inspirador da cultura moderna. A listade trafulhices, indignidades e oportunismos da personagem é infinda. Mas um caso é bem simbólico. Entre muitos temas, o filósofo francês debruçou-se em vários das suas obras sobre a importância decisiva da educação das crianças, apresentando visões inovadoras, sobretudo no tratado Émile, ou De l'éducation (1762), considerado um dos grandes textos primitivos sobre o tema. Vale a pena saber que ele abandonou na miséria os filhos que teve das suas múltiplas amantes, nunca assumindo a responsabilidade por qualquer deles.

Vivemos num tempo que colocou ideais acima das pessoas. Aliás, aqueles que desprezam as críticas deste livro pela admiração da obra dos visados são eles mesmos vítimas do mesmo vício intelectual: a terrível tentação de amar uma ideia mais que o próximo.

no DN

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