segunda-feira, fevereiro 22, 2010

Cuidado, gentes da Província!


CARTA DO CANADÁ
Fernanda Leitão

            Numa descuidada passeata pela internet, caíu debaixo dos meus olhos esta saraivada dada à estampa no SOL:
            “O Processo chamado “Face Oculta” tem as suas raízes longínquas num fenómeno que podemos designar por “deslumbramento”. Muitos dos envolvidos no caso, a começar por Armando Vara, são pessoas nascidas na Província que vieram para Lisboa, ascenderam a cargos políticos de relevo e se deslumbraram. Deslumbraram-se, para começar, com o poder em si próprio. Com o facto de mandarem, com os cargos a distribuír pelos amigos, com a subserviência de muitos subordinados, com as mordomias, com os carros de luxo, com os chauffeurs, com os salões, com os novos conhecimentos. Deslumbraram-se, depois, com a cidade. Com a dimensão da cidade, com o luxo da cidade, com as luzes da cidade, com os divertimentos da cidade, com as mulheres da cidade. Ora, para homens que até aí tinham vivido sempre na Província, que até aí tinham uma existência obscura, limitada, ligados às estruturas partidárias locais, este salto simultâneo para o poder político e para a cidade representou um cocktail explosivo”.
            Interrompo a transcrição para fazer alguns comentários a esta prosa de prego-e-racha, sem estilo nem graça, quase a lembrar as da agit-prop usadas pelo”sol da terra” de má memória.  Para o autor, nascer na Província é ser inferior, atrasado, geneticamente esquisito  e, portanto, vulnerável à cidade que fascina e corrompe.  Na província, segundo ele, todos estão mortinhos por se corromperem na cidade, o que não é caso dos alfacinhas de gema, todos sem excepção, incorruptíveis. A honra e a força de carácter é, de acordo com esta saraivada, apanágio dos nascidos à beira Tejo.  Deve ser por isso que falam de cátedra e se comportam como  donos de tudo, incluindo dessa Província donde  vêm os maraus e a paparoca.  Porque o lado maçador é esse, a paparoca e a água vêm da Província, mailos braços para trabalharem. Uma fatalidade que já deu o que deu, em 1975, quando o PC mais o Movimento das Forças Armadas  decidiram, também, insultar a inteligência e o patriotismo da Província: os da dita cortaram as estradas, em Rio Maior e como já estavam com a mão na massa, incendiaram as carrinhas que transportavam os jornais pejados de insultos, ao mesmo tempo que o Tio Abílio fazia mocas ao torno, para o que desse e viesse. Foi o princípio do fim dos autoproclamados donos do país.
            Não sei se o autor da prosa conhece bem a Província ou que espécie de gente conhece ele no interior do país. Posso adiantar-lhe que, na Província, há um grande número de gente culta, a meter num chinelo os sapateiros que teimam em tocar o rabecão do jornalismo,  há muita gente fina, civilizada e de bom carácter. Há milhões de pessoas da Província que vivem em cidades maiores, mais luxuosas do que Lisboa, embora não necessariamente mais bonitas, e não vivem de expedientes nrm de boca aberta.  Entre esses milhões de expatriados, há centenas ocupando altos cargos na banca, nas empresas, no poder municipal, na política, e não consta que sejam corruptos. O autor da saraivada parece, ele sim, um “deslumbrado” com aquilo que considera uma fortaleza inexpugnável: um jornal teúdo e manteúdo por um sócio de uma angolana que compra tudo quanto vê em Portugal, mais dois angolanos ensopados em milhões. O que foi trombeteado como um acto de “libertação” por Felícia Cabrita, a babada biógrafa de Pinto da Costa, quando chamada a depor numa comissão parlamentar que mais parece, nesta quaresma, o baile dos trapalhões.  Resta-nos aguardar que o jornal passe a publicar saraivadas  contando a verdade do que se passa em Angola.  Porque, enfim, ninguém pode acreditar que por lá haja censura e asfixia democrática.
            A mim mais me parece cisma contra quem é da Província. Já um familiar do autor da saraivada, num tempo em que ainda andava muito ligado ao PC, cismou contra um professor de português na Universidade de Amesterdão, transmontano honrado,  escritor de mérito e respeitado, cidadão que nunca comeu da gamela partidária, pondo a correr a difamação de que ele seria da pide. E não há muitos meses, um outro familiar do autor da saraivada, através da RTP, visto e ouvido por milhões de pessoas em Portugal e no estrangeiro, pôs nas ruas da amargura o cônsul  Aristides Sousa Mendes, um beirão, deixando claro que o tinha por pessoa desonesta, enquanto endeusava a perseguição movida por Salazar ao diplomata que salvou da morte largos milhares de judeus.  Estas cismas,às vezes, passam de geração em geração.
            Para finalizar, recomendo ao autor da saraivada que não repita generalizações que insultam. Que saia de Lisboa e verifique que toda esta balbúrdia apenas interessa a políticos carreiristas e jornalistas que vivem dos políticos. Quem, na Província, pega na enxada, se desdobra nas fábricas, quem tem de labutar para pôr na mesa o pão da família, reage mal a estas confusões. Deixe a Justiça trabalhar.


sexta-feira, fevereiro 19, 2010

sábado, fevereiro 13, 2010

A queda da 1.ª República: a História repete-se

Por Manuel Monteiro

Em Maio de 1926, teve inicio um movimento militar que haveria de pôr fim à 1.ª República. Portugal vivia em profunda crise. Financeira, económica e política. O desemprego, associado a uma degradação das instituições, evidenciava dois países: o formal e o real.
O primeiro estava corroído pela mesquinhez, pelos interesses egoístas de grupos partidários; o segundo estava distante dos políticos, descrente face ao presente e nada confiante com o futuro. Os republicanos sérios, preocupados com o Estado, pouco podiam fazer diante da voracidade das intrigas e da pequena política. E num dia, fruto dos erros cometidos, o regime caiu.

Caiu com o aplauso da população que se colocou ao lado dos revoltosos. Um relato atento de documentos sobre a época – e há, recentemente publicada, uma obra notável do dr. Luis Bigotte Chorão, intitulada A Crise da República e a Ditadura Militar – pode mostrar-nos como estava de rastos a imagem da Justiça, da Administração Pública, do Parlamento, do Governo e de toda a classe política em geral.

Os problemas, como muitos disseram, não se resumiam ao défice e aos elevados juros a pagar no estrangeiro; os problemas passavam, antes de mais, pela credibilidade perdida no funcionamento da Justiça e pela separação entre o povo e os seus representantes.

Hoje, quase 84 anos passados, chega a ser arrepiante como tudo é tão idêntico e tão próximo.
Eloquentes e notórios analistas, supostos descobridores da análise inédita, ignoram ou propositadamente nada dizem sobre o que provocou a queda da 1.ª República.

Sem o brilho, a inteligência e a qualidade de quem ao tempo escrevia sobre o assunto, eis que os vemos agora sentados nas suas ‘cátedras’ de petulância, cheios da sua imensa pequenez, culpando somente o que se passa lá fora para justificar o que de errado voltámos a fazer cá dentro.

Mas a História repete-se. Sem as especiarias da Índia, o ouro do Brasil e o dinheiro da CEE, voltámos ao que éramos. Pobres e cheios de deficiências estruturais, mas com a leveza de espírito característica dos incautos.

Mudou alguma coisa? É certo que sim. Temos mais auto-estradas, mais periferia e muitos subsídio-dependentes. 
É ainda certo que temos pessoas profissionais de inquestionável qualidade, apesar de se contarem pelos dedos das mãos as possibilidades de êxito que alcançam numa sociedade como a portuguesa que cultiva e sustenta a mediocridade. Ser medíocre, mediano, poucochinho, é condição base para progredir e para sobreviver.

Não há agricultura, nem pescas? Não possuímos indústria? Mas que relevância têm estas coisas menores, perante a pujança dos estádios, dos corruptos e das obras públicas desnecessárias? Diante de tamanha grandeza interessará para alguma coisa o estado deplorável a que chegámos?

Para o país formal não, contudo há ainda quem se interesse. Será uma minoria? Talvez. Uma minoria que não se conforma e uma minoria que não faz depender a razão das suas preocupações e ideias da quantidade volátil dos espectadores do circo.

Até porque, como em todos os circos, esses espectadores só aplaudem enquanto tiverem entretenimento e pão. E o entretenimento pode continuar, mas o pão vai escassear.

terça-feira, fevereiro 09, 2010

Cá como lá


CARTA DO CANADÁ
Fernanda Leitão
                     
            Desde que vivo no Canadá, houve dois referendos na província do Quebeque para se apurar se os seus habitantes queriam ou não a independência. Ganhou sempre o Não.  No último até houve um chefe de fila separatista que, perante a derrota, a atribuíu iradamente aos imigrantes. Nunca percebi a surpreendida cólera do político e por duas razões: porque as pessoas emigraram para o Canadá e não para o Quebeque e porque, sendo que quem emigra fica a dever esse desgosto a aventureirismos políticos nos seus países de origem, é óbvio que ninguém vindo de fora quer contribuir para mais sarilhos.  Portuguesente falando, quer sopas e paz.
            O fenómeno político interessou-me e tenho-o seguido atentamente. Fiquei a perceber que, no Quebeque, o movimento separatista é republicano, de candeias às avessas com a Igreja Católica e daquela esquerda engraçada que, depois de ter a lua, quer também o sol. As exigências para a independência falaram por si: queriam  do Canadá a mesma moeda, as pensões de reforma e o   sistema de saúde (que é universal e gratuito).  Mas independentes, com lugar na ONU e direito a dizer do Canadá o que lhes apetecesse.   Para mim, que sou do sul da Europa e lascarina, esta postura fez-me lembrar aqueles filhos malandrecos, abardinados, que querem pôr-se independentes com uma parte da casa paterna transformada em suite de porta para a escada, mais cama e mesa e roupa lavada, e uns trocos para a bica.  Não era para levar a sério.  O Canadá inglês também não levou e até tem o partido separatista no parlamento federal. Este lado do Canadá, que vai do Atlântico ao Pacífico,  é de matriz britânica, tem nos genes a paciência que calcula o futuro, parece que deixa andar mas está só à espera que a fruta amadureça.  Há dias o jornalista Paul Krugman, a propósito de a banca canadiana ter aguentado firme durante a crise financeira que abalou o mundo, disse que o Canadá é “sensaborão” e “chato”.  Será como ele diz, mas faz bem.  É como as termas, água e pasmaceira, mas o bem que aquilo faz.
            Acho que a Madeira é muito parecida com o Quebeque.  A diferença é que por cá ninguém se alia aos do Quebeque para ganhar eleições ou para exigências que ponham em problemas o país.  Para estes políticos, com todos os defeitos que possam ter, o Canadá está primeiro. É toda uma diferença que os portugueses acabarão por reconhecer.

terça-feira, fevereiro 02, 2010

Mártires da Pátria


Homília na Missa por El-Rei D. Carlos e pelo Príncipe Real

(Igreja da Encarnação, 1-2-2010)

1. Introdução. Começa o ano civil com a comemoração do Dia Mundial da Paz, sob os auspícios da nossa Padroeira e Rainha, Nossa Senhora da Conceição, cuja maternidade divina se celebra também, liturgicamente, nesse primeiro dia de Janeiro. A esse tão feliz início do primeiro mês do ano, segue-se, no primeiro dia do mês seguinte, a trágica recordação de igual data do ano de 1908, em que tombaram, por Deus e pela Pátria, Sua Majestade El-Rei D. Carlos I e Sua Alteza Real o Príncipe D. Luís Filipe, em dramático atentado ocorrido no Terreiro do Paço, onde hoje uma lápide comemorativa recorda tão funesto acontecimento.
É já uma tradição de muitos portugueses, monárquicos ou simplesmente patriotas, recordar esta efeméride com uma Missa de sufrágio pelas Pessoas Reais assassinadas no 1º de Fevereiro, seguida de singela romagem aos seus túmulos, no panteão da Família Real, em São Vicente de Fora. Hoje, por uma singular circunstância, não é possível essa homenagem junto das urnas que guardam os seus restos mortais e, por esse motivo, a celebração eucarística em sufrágio das suas almas ocorre nesta Igreja de Nossa Senhora da Encarnação, por especial favor do seu Prior, o Senhor Cónego João Seabra, a quem agradeço a hospitalidade.
Saúdo também, em especial, Suas Altezas Reais os Duques de Bragança, na sua qualidade de Chefes da Casa Real e, por isso, representantes de El-Rei D. Carlos I e do Príncipe D. Luís Filipe. Cumpre-me também saudar o Senhor Presidente da Causa Real, o Senhor Presidente da Direcção do Instituto da Nobreza Portuguesa, o Senhor Presidente da Associação da Nobreza Histórica de Portugal, o Senhor Presidente da Real Associação de Lisboa, a quem agradeço o honroso convite para presidir a esta celebração, e os outros representantes de todas as outras entidades que, uma vez mais, promovem ou se associam a este acto.
Por último, mas com não menos consideração, cumprimento os numerosos fiéis que quiseram participar nesta liturgia, porque o fazem por um dever de justiça, que muito os honra, para com a memória das vítimas do atentado e na perspectiva de um renovado compromisso com a sua fé cristã e com o futuro de Portugal.
2. Memória e celebração. Que celebra a Igreja quando recorda, mais de um século depois, o passamento de El-Rei D. Carlos e de seu filho, o Príncipe Real? Não poderá resultar anacrónica esta evocação, tanto tempo decorrido já sobre o nefasto acontecimento? Não se estará porventura a incorrer num retrógrado saudosismo de outros tempos e eras? A estas dúvidas quanto à oportunidade desta celebração, poder-se-iam ainda acrescentar outras questões respeitantes à sua pertinência. Com efeito, o facto de esta evocação ocorrer numa igreja e em plena liturgia eucarística, não poderá ser entendido como uma desvirtuação da instituição eclesial e da própria Santa Missa? Não se corre o risco de confundir o temporal com o espiritual, o trono com o altar?
A Eucaristia é sempre uma acção de louvor à Santíssima Trindade, pela qual se realiza verdadeiramente, embora de forma incruenta, o Sacrifício de Nosso Senhor Jesus Cristo no Calvário. É, por isso, uma acção litúrgica, ou seja, de culto divino, que realiza o fim latrêutico que anima toda a vida eclesial, porque a principal finalidade da Igreja, dos seus fiéis e até de cada homem é dar glória a Deus. Mas como a glória de Deus é, como já ensinava São Leão Magno, o homem vivo, a celebração da divindade é também, em Cristo Nosso Senhor, comemoração da humanidade assumida e redimida no Verbo encarnado. Para além de verdadeiro sacrifício, a Missa é também memória e celebração.
Neste preciso sentido, esta evocação é, em primeiro lugar, uma Missa de sufrágio pelas almas do falecido monarca e de seu filho primogénito. Sem desrespeitar a dignidade da sua estirpe real, nem a excelência das elevadas funções que ambos exerceram, é sobretudo enquanto fiéis cristãos que a Igreja os recorda nesta celebração e eleva ao Céu preces pelas suas almas.
A este propósito, vem a talho de foice recordar um cerimonial ainda em uso na Casa Real austríaca, sempre que um membro desta família imperial é sepultado no panteão real, sito na vienense Igreja dos Capuchinos.
À chegada do féretro e do seu acompanhamento, a entrada do templo encontra-se fechada, pelo que um dignitário do cortejo percute na respectiva porta. A esse toque, alguém responde de dentro:
- Quem é?
Nos termos protocolares, enunciam-se então todos os títulos nobiliárquicos e os tratamentos honoríficos a que esse membro da família imperial tivesse direito.
Mas a essa apresentação do defunto, segue-se uma lapidar negativa:
- Não conheço.
Repete-se o acto de bater à porta e, inquirida por segunda vez a identidade de quem deseja entrar, dizem-se de novo, mas de forma mais abreviada, as honrarias inerentes ao falecido. Então, de dentro da igreja fechada, ouve-se mais uma vez uma voz anónima que diz laconicamente:
– Não conheço.
À terceira vez, já não se referem altezas nem títulos, não se citam honras, nem nobiliárquicas prerrogativas, e o corpo insepulto é apresentado apenas como o de um pobre pecador.
E é só então que a porta, que não cedeu ante pergaminhos de imemorial nobreza, que não se rendeu ante séculos de gloriosa história familiar, atestada pela infindável ladainha das honras herdadas, se abre de par em par, dir-se-ia que comovida pela grandeza da humildade de um pobre de Cristo, que suplica a graça de um lugar de descanso para o seu corpo, enquanto não chegar a hora, tremenda e gloriosa, da ressurreição final.
Assim é também a entrada no reino dos Céus, majestoso pórtico que permanece indiferente às mais sublimes dignidades terrenas, sejam elas de natureza política, histórica, intelectual, económica, artística ou outra. Para a salvação eterna, pouco importa o poder, a fidalguia, a beleza, a inteligência ou a riqueza material do cristão. Não é por esses seus atributos que se lhe franqueará a porta do paraíso que, no entanto, se escancará ante a singela grandeza de quem tiver a dita de se reconhecer a si mesmo o que afinal todos somos nesta vida: pobres pecadores em demanda da pátria celestial, que só pela infinita misericórdia de Deus poderemos alcançar.
3. Mártires da Pátria. Se é este piedoso propósito a principal razão desta liturgia, também é verdade que esta celebração é igualmente comemorativa, não do facto lamentável do regicídio, mas das suas vítimas inocentes.
Já os primeiros cristãos se reuniam nos seus templos para a celebração dos mistérios divinos, mas também para a gloriosa comemoração dos seus irmãos que tinham dado a vida pela fé, pois a palma do seu martírio era razão suficiente para concluir, com absoluta certeza, a sua eterna salvação. Foram estes os primeiros santos do calendário cristão, os primeiros também a serem celebrados com festas próprias e a merecerem o culto público dos fiéis, mas sempre subordinado à adoração que só às Pessoas divinas é devida.
Muito embora a definição de martírio pressuponha, por regra, a entrega voluntária da vida por causa da fé, também é verdade que a Igreja tem admitido, ao longo da sua bimilenar história, algumas excepções. Por exemplo, a antiquíssima veneração dos santos inocentes, as crianças assassinadas por Herodes no seu intuito de matar o recém-nascido Rei dos Judeus, parece indiciar uma aplicação sui generis do conceito de martírio, na medida em que aquelas crianças não eram crentes, nem morriam voluntariamente em defesa de uma fé que, por certo, ignoravam absolutamente. Nesse caso, como a sua vida foi ceifada em nome do ódio anti-cristão, que movia o ímpio tirano, a Igreja entendeu que lhes era devida a honra do martírio e, como tal, as festeja no seu calendário oficial, na oitava do Natal.
Outro exemplo significativo e bem mais recente é o caso de São Maximiliano Kolbe, também oficialmente considerado como mártir, mas cuja morte também não se ficou a dever directamente à sua fé. Prisioneiro num campo de concentração nazi, este bem-aventurado ofereceu voluntariamente a sua vida em resgate de um outro detido, cuja morte tinha sido decidida como medida de retaliação. Não obstante a sua morte não ter sido provocada directamente pelo facto de ser cristão, o dicastério competente da Santa Sé entendeu que este santo religioso tinha sido mártir, senão em nome da fé, pelo menos em nome da caridade, pois ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida pelos seus amigos.
Neste sentido mais amplo, não repugna considerar El-Rei D. Carlos I e o Príncipe Real como vítimas do ódio dos seus assassinos e ainda das associações em que os mesmos militavam e foram também, por esse motivo, cúmplices morais do regicídio, pois ninguém pode pôr em dúvida que a morte de ambos foi uma consequência directa da sua heróica entrega ao seu país e ao seu povo, que souberam amar e servir até ao fim.
Os Reis D. Carlos e D. Sebastião são, curiosamente, os únicos monarcas portugueses que faleceram de morte violenta. Se o penúltimo rei da dinastia de Avis pereceu no campo de batalha, às mãos dos inimigos do império e dos infiéis, o penúltimo monarca da quarta dinastia tombou no Terreiro do Paço, sob as balas dos inimigos do trono e do altar. A tragédia de Alcácer-Quibir foi o princípio do fim da independência e da grandeza de Portugal de aquém e além-mar, como o drama da Praça do Comércio foi um atentado contra a independência nacional, o princípio do fim da monarquia e também do Portugal ultramarino.
Não me cabe a mim reconhecer a grandeza do supremo sacrifício de El-Rei D. Carlos I e de Dom Luís Filipe, mas creio que expresso uma convicção comum a todos os verdadeiros portugueses, qualquer que seja a sua ideologia política, se disser que ambos foram, sem favor, mártires da Pátria.
Dos primeiros fiéis que foram martirizados dizia-se que eram sementes de novos cristãos, porque o seu sangue, tão heroicamente derramado, não podia deixar de dar frutos de verdadeira santidade. Mutatis mutandis, atrever-me-ia a dizer que as vítimas inocentes do regicídio são também um título de glória para Portugal: são penhor da nossa esperança, na certeza de que o seu sacrifício não foi inglório, antes prenúncio de outros heroísmos, de outros portugueses igualmente capazes de se darem sem medida pela sua fé e pela sua pátria.
4. A Igreja e a República. Este ano de 2010, centésimo segundo aniversário do regicídio, é também o ano em que se recorda a proclamação da república portuguesa. Como é sabido, a alteração do regime político ficou-se a dever ao golpe de Estado de 5 de Outubro de 1910 e, mais remotamente, ao atentado que vitimou El-Rei D. Carlos I e o Príncipe Real.
A relação entre o regicídio e a posterior instauração do regime republicano não é já uma simples conjectura ou uma mera hipótese científica, mas uma verdade histórica indesmentível. Não será portanto desprovido de fundamento que esta reflexão incida também sobre este particular, tendo em conta que esta celebração ocorre precisamente no centenário da república, cujas comemorações oficiais tiveram ontem o seu começo.
A Igreja não tem preferências de carácter institucional, não apenas porque respeita a legítima autonomia dos povos no que concerne à sua organização política, mas também porque o seu fim é transcendente. Contudo, não pode deixar de se pronunciar sobre aqueles regimes que, de algum modo, atentam contra a liberdade da Igreja e dos fiéis, nomeadamente violando os mais elementares direitos fundamentais. Neste sentido, a Igreja não é, nem nunca foi ou poderá ser, republicana ou anti-republicana, monárquica ou anti-monárquica, mas será sempre contra todos os sistemas políticos que, qualquer que seja a sua configuração constitucional, oprimam o homem e se oponham ao bem comum.
Sem ânimo para me espraiar sobre um tema que é mais próprio de uma sessão académica do que de uma homilia, gostaria no entanto de enumerar, a título de exemplo, algumas das medidas levadas a cabo pelo primeiro governo provisório republicano, logo após o golpe de 5 de Outubro de 1910, portanto numa época em que o supremo órgão executivo nem sequer contava com nenhum tipo de legitimidade democrática.
Dois dias depois, a 7 de Outubro de 1910, todos os feriados religiosos foram suprimidos, mantendo-se apenas o 25 de Dezembro, mas como festividade laica, ou seja, como Dia da Família portuguesa. Por sinal, as anticlericais leis da família, que estabeleceram o divórcio e acintosamente previam pensões para as «viúvas» e filhos dos padres, foram publicadas no dia 25 de Dezembro de 1910, numa provocatória ofensa ao santo dia de Natal.
Foi também em Outubro de 1910 que se procedeu à encarceração e à posterior expulsão dos religiosos da benemérita Companhia de Jesus, dando por vigentes os correspondentes decretos pombalinos. De imediato, proibiram-se os juramentos religiosos, bem como a presença de crucifixos nos edifícios públicos e, ainda, o uso de vestes talares pelos clérigos e religiosos. O ministério da Guerra mandou retirar de todas as fortificações militares os nomes dos santos que até então as designaram e impediu-se o ensino da doutrina cristã nas escolas. Fechou-se ao culto a capela da Universidade de Coimbra, que foi convertida, à boa maneira bolchevique, num museu de arte sacra. As matrículas no primeiro ano da Faculdade de Teologia foram anuladas, por decreto do governo, e abolida a cadeira de Direito Eclesiástico nas faculdades estatais. Foi vedada aos membros das Forças Armadas a participação em actos religiosos e, já em 1911, à imagem e semelhança da Revolução Francesa, foi determinado pelo governo que, nos tribunais, cartórios e repartições do Estado, não se fizesse menção à era de Cristo.
Não é preciso prosseguir para poder concluir, mesmo sem necessidade do aval de nenhum historiador, a matriz profundamente anti-cristã do regime instaurado em Portugal em 5 de Outubro de 1910. Uma tal afirmação não nasce de nenhum preconceito, mas de um juízo desapaixonado dos factos, de que a precedente lista não é mais do que uma significativa e eloquente amostra. Negar o seu carácter essencialmente anti-católico é negar uma evidência e, como se costuma dizer, contra factos não há argumentos.
No contexto desta política, tão anticlerical como anti-democrática, entende-se que o regicídio fosse indispensável para a implementação de medidas que, pelo seu carácter profundamente sectário e injusto, nunca poderiam ter o patrocínio de um rei. Nenhum soberano cristão digno desse nome, nenhum verdadeiro Rei de Portugal, nação fidelíssima, se sujeitaria nunca a uma tal tirania e, por isso, os revolucionários de 5 de Outubro aperceberam-se de que só a queda da monarquia poderia permitir a vitória do seu ideário. E como a realeza era então, como sempre foi, querida pelo povo, não restava outro expediente para a sua abolição que não fosse o crime e a traição.
Triste regime o que nasce de mãos assassinas, tingidas com o sangue inocente de dois dos maiores mártires da história de Portugal: El-Rei D. Carlos e o Príncipe Real!
5. Salvar a família, salvar Portugal. Talvez alguém pense que o carácter profundamente anti-democrático e anti-cristão da primeira república é apenas uma desastrada reminiscência, uma triste página de um passado que, felizmente, nada tem a ver com o nosso tempo.
É verdade que o Portugal de 2010 é muito diferente do de 1910, mas talvez não seja temerário afirmar que o espírito laicista de outrora permanece vivo no regime que, talvez por se identificar tanto com os seus centenários fundadores, se presta a festejá-los com tanta pompa e circunstância, a expensas do exausto erário público. Não obstante as convicções cristãs da grande maioria dos portugueses, insiste-se numa política contrária à mais elementar liberdade, através de medidas que, embora não hostilizando directamente a Igreja Católica, procuram a sua destruição. Não se impede formalmente a acção da Igreja, mas silencia-se a sua voz, atenta-se contra o seu magistério e contra as suas instituições.
Medidas que seriam impensáveis para os republicanos de 1910, são hoje uma triste realidade. Pense-se no aborto, impunemente realizado e pago pelas instituições do Estado, que não têm contudo verbas para os doentes crónicos, nem consegue atempadamente satisfazer todos os pedidos de intervenção cirúrgica. Pense-se no divórcio, entendido como um simples repúdio que banaliza a família e atenta contra a dignidade do cônjuge mais desfavorecido. Pense-se na iníqua equiparação do casamento civil às uniões entre pessoas do mesmo sexo, por alguns festejada como ponto alto das celebrações do centenário republicano, talvez para vincar que os actuais governantes se revêem na índole anticristã dos seus predecessores.
Para salvar a família e salvar Portugal, é preciso que muitas famílias cristãs se não demitam da sua responsabilidade social!
Para salvar a família e salvar Portugal, é preciso que a Família Real, que é a fiel depositária de oito séculos de tradição cristã e de glória nacional, nos continue a guiar pelos caminhos da nossa História, na fidelidade à Igreja e à nossa memória e independência nacional!
Para salvar a família e salvar Portugal, é preciso que o exemplo heróico de El-Rei D. Carlos I e do Príncipe Real sejam fermento de muitos portugueses que hoje, como naquele fatídico 1º de Fevereiro de 1908, dêem a sua vida pela fé e pela Pátria!
6. Conclusão. Quando Suas Majestades El-Rei D. Carlos I e a Rainha D. Amélia, e Sua Alteza Real o Príncipe Dom Luís Filipe atracaram, pelas 17 horas do dia 1 de Fevereiro de há 102 anos, na estação fluvial do Terreiro do Paço, voltavam a Lisboa depois de uma estadia em Vila Viçosa. Junto ao seu Paço Ducal, ergue-se o Santuário da veneranda imagem de Nossa Senhora da Conceição, pelo que talvez não seja excessivo supor que a Santíssima Virgem Maria terá acompanhado a Família Real no seu regresso à capital, retribuindo assim a sua boa vizinhança. E como Nossa Senhora é Mãe que quer sempre o nosso bem e Rainha que tudo pode, é certo que assistiu a El-Rei e ao Príncipe Real na sua última hora. Que os tenha pois em Sua santa glória!
A Nossa Senhora da Conceição dirigimos uma última prece, pedindo à nossa Padroeira que seja agora de novo – como foi, em 1385, para o Santo Condestável e, em 1640, para El-Rei D. João IV – a nossa bandeira, sob a qual nos comprometemos a defender a fé, para salvar Portugal.

P. Gonçalo Portocarrero de Almada